Marcus Vinícius Beck
Assédio e ostentação: festival conta com bêbados ordinários
Entre os dias 1 e 2 deste mês aconteceu festival Villa Mix. Assédio e desorganização marcaram a ‘festa’.
Baaaaduuuunnnnnnttttsssssssssssss... Entreguei o ingresso para o cara que estava na catraca da entrada, mas o sujeito disse que havia um problema com o código de barras. Levei as mãos à cabeça, cocei-a, suspirei e falei: “O que há de errado?” O sujeito encarou-me, e bradou: “Seu documento, por favor, senhor”. Fingi-me de desentendido – eu não iria mostrar gratuitamente meu RG para um imbecil que conheci há menos de três segundos. “Sem documento não há a mínima possibilidade de o senhor entrar”, gritou o desgraçado, com as veias saltando no pescoço, visivelmente descontrolado.
Sim, eu não era chamado de ‘senhor’ há tempos – acho que a última vez que isso rolou foram nas filas de banco, cujo domínio do vernáculo dos atendentes é extremamente burocrático, de modo a deixar-lhe com o sangue concentrado todo à testa. Depois de muita luta, explicações praticamente em vão, consegui entrar na Villa Mix – famoso festival de músicas produzidas pela Indústria Cultural, isto é, por magnatas que fabricam artistas para tocar incessantemente no rádio.
Estávamos eu e José Pedro da Silva, 35, paranaense, agrônomo e são-paulino. Em sã consciência, eu jamais iria num evento desses. Primeiro: não tenho dinheiro, sou um proletário do texto, cujo pagamento não tem data fixa para cair. Segundo: eu ganhei o ingresso, e não encontrei em um primeiro momento nenhum motivo que não me fizesse ir ao festival. Lá haveriam bebidas, de graça, e eu tenho necessidade de ingeri-las nos sábados à noite. É ritual.
Parei no primeiro caixa que encontrei. A atendente tinha olhos tristes e estava ali à toa, querendo que o relógio caminhasse rápido o bastante para tirar-lhe daquele lugar sórdido. “Moça, como funciona o lance do open bar?”, perguntei. Ela me encarou de cima a baixo: eu vestia camisa xadrez preta e branca, calça jeans escura folgada, tênis all star Chuck Taylor preto, de couro. “Hoje, infelizmente, senhor, a festa não é open bar”, asseverou ela. Olhei à tabela de preços que havia em minha frente. A cerveja custava R$ 10, e os organizadores vendiam dez Brahmas, portanto menos de uma caixinha, por estrondosos R$ 100.
Sem chance. Eu não tinha essa grana, mas José tirou o cartão do bolso e pagou.
“Porra, assim não vai dar, não”, esbravejou ele.
“Pois é”, meneei a cabeça, concordando. “O preço está caríssimo, lucro quase de 100%”.
“É para pagar o open bar de amanhã”, explicou José, bem melhor na arte lidar com números do que eu, mero operário de sujeitos, verbos e predicados.
Acendi um cigarro.
Minha aparência era daqueles bêbados que passaram noites intermináveis na folia. De fato, eu sentia o Old Parr que bebi horas antes evaporar pelas minhas glândulas sudoríparas. Sempre suei demais no clima seco do Cerrado, especialmente nesta época do ano, cujo inverno sangra seu nariz por conta da escassez de chuva, e até hoje nunca fui capaz que explicar o que acontece comigo aqui.
Ouvi o primeiro acorde de Mateus e Kauan. Antigamente, o sertanejo não exibida canudo universitário por aí. O som era feito com uma viola caipira de 12 acordas. Hoje, porém, a galera saiu da zona rural para ir estudar nas universidades, e, é claro, o som deles não fala nada mais do que ostentação, noites recheadas a sexo e bebidas milionárias. “As letras de hoje em dia são feitas para que se tenha sucesso repentino”, afirmou Bruno, da dupla Bruno e Marrone.
Verdade. Constatei isso após reparar na roupa dos jovens que estavam no estacionamento do Serra Dourada, neste final de semana: todos esbanjavam o mesmo figurino. Calças Levi´s, botas de couro e camisa quadriculada Tommy Hilfiger. As mulheres também não fugiam da padronização indumentária.
Elas usavam roupas geralmente pretas, com botas à altura do joelho e cabelos soltos, voando ao ventos como palavras que são escritas pelo poeta numa noite de insônia e solidão. Houve tempo ainda para eu encontrar uma moça, de aproximadamente 20 anos, com cabelos azuis, na altura do pescoço. Por um momento, achei que estava com sono, pois lembrei-me de uma amiga. Depois, caí na real e vi que era apenas uma mulher com um cara, dando uns beijos. Nada demais.
Eu contei vários energúmenos que abordavam mulheres no meio da multidão, de modo a tê-las nem que seja para um frívolo beijo. Elas, às vezes, ficavam sem jeito. Ora, imagine um desgraçado pôr a mão na sua bunda enquanto você está curtindo um show? Sim, não deve ser nada legal. Na verdade, fico profundamente entristecido quando vejo gente voar em cima de uma mulher como se ainda estivesse na Atenas de Platão e Aristóteles. Nestas festas, os filhas da puta estão aos montes e, frequentemente, desejo estilhaçar seus dentes pelo chão, como se fosse o Paul Kemp, de Diário de um jornalista bêbado.
O show de encerramento de sábado (1) foi da cantora estadunidense Demi Lovato, famosa por participar do seriado infantil Barney e seus amigos. Sem dúvidas, no momento em que ela subiu ao palco eu me apaixonei. Demi é simpática, mesmo tento uma barreira linguística entre ela e o público. Nas incontáveis idas minhas ao banheiro, quase parei embaixo do palco para gritar que eu a amava, mas meu crachá do jornal, de estagiário, não seria suficiente, ao menos que eu pretendesse jogar uma conversa sobre meus privilégios no ouvido do motorista do táxi.
Idiota. Sertanejo nunca foi sua praia, e agora você se tornou um acéfalo em potencial. Não. A música, como diz o doutor do jornalismo gonzo, Hunter Thompson, é um combustível que faz um carro andar de madrugada, mesmo que sem gasolina.
“O que você acha de ir embora?”, perguntou José. Olhei-o, e falei: “Beleza”.
Antes, todavia, paramos no primeiro bar que achamos, e pedimos duas cervejas para seguirmos nossa longa caminhada até o Criméia Leste.
Cansado, com sono e tristemente sóbrio, revolvemos ir para a casa, embora uma cerveja fosse a melhor ideia que se poderia ter nesse momento. Encontrar um táxi ou Uber, às 23h, de sábado, foi uma tarefa dificílima. Não havia nenhum motorista nas imediações do Serra Dourada, e assaltantes conseguiram fazer a festa com iphones de última geração de pessoas que exibiam cédulas de 100. A porra do aplicativo do Uber travou, e sair às ruas movimentadíssimas do Jardim Goiás foi a melhor opção, após 40 min parados no cruzamento com a rua 115.
“Que foda”, disse José. “Acho que tinha de ser um pouco mais organizado”.
“É, mas os caras não tem, necessariamente, a intenção de fazer um negócio que preste”, afirmei.
“Porra, mas vem gente do País inteiro”, constatou.
“Verdade”, respondi.
Perplexo e estarrecido, acendi mais um cigarro. José estava impaciente. Sua calma, que lhe é característica, deu lugar à ansiedade. Caminhar era importante para nós, e saímos como se estivéssemos fugindo da polícia numa boca de fumo de madrugada.
Após alguns passos na gélida madrugada goianiense, abordamos um taxista próximo ao supermercado Pão de Açúcar. “Não gosto de passar por aqui”, reclamou o motorista. Olhamos ele, impressionados.
“Vamos para o Criméia Leste, ali perto do Bretas, sabe onde é?, perguntei. Ele virou o pescoço, levantando as sobrancelhas. “É, claro”.
O taxista tinha cara de gigolô estadunidense. Encarei-o por minutos instantes, e tive certeza de que ele deveria cheirar cocaína nas horas vagas e comer putas caríssimas com dinheiro que cobra de seus clientes durante a madrugada. “Fazeeennndddoooo o que o diabo gosta”, canta Raul Seixas.
É, doctor Junter Thompson, a música certa move um carro de madrugada, e faz você interagir com gigolôs cocainômanos que dispensa música sertaneja.
BBBBiiipppppp.... Não consegui entrar. Problema com ingresso, novamente. Assim como aconteceu no sábado, o cara pediu minha identidade. Finge-me de desentendido, e ele ficou olhando-me furiosamente.
“Seguinte, campeão, a gente comprou esse ingresso de um cara que não ia na festa porque precisava estar em Uberlândia, amanhã, antes do almoço”, explicou José.
“E vocês caíram na dele?”, questionou o segurança.
“Hein?”, perguntei.
“Me parece que vocês entraram numa bela de uma roubada”, afirmou o desgraçado do segurança.
“Roubada? Não, não”, disse José.
“Só posso liberar ele”, resmungou o segurança, apontando o dedo para mim, “se vocês conseguirem uma foto do tal Rafael”.
Como é que é? Quer dizer que para eu entrar nessa merda de Villa Mix tenho de prestar-me ao papel de policial? Não pode. Será desvio de função, porra. Em que mundo vivemos? Pessoas com um pouco de autoridade tornam-se altamente perigosas e estranhas. Por isso que desde meu ingresso no curso de Jornalismo, de uma instituição particular, eu repudio toda espécie de autoridade.
Eu estava perto de dar-lhe um soco bem ao meio da cara do tal segurança. Cretino! Desisti da ideia, pois bastava um leve toque em mim para fazer-me mergulhar com a testa no meio do asfalto do Serra Dourada. Resolvi deixá-lo falando sozinho. Era o melhor a se fazer.
Lá estava eu: eu sujeito estranhos aos padrões dali. Sambista, com chapéu à lá Adoniran Barbosa na cabeça, camiseta azul escura, calça também azul e all star branco, de couro. Como domingo a festa era open bar, a primeira coisa que fizemos ao pôr os pés no Serra foi pegar uma cerveja. De repente, senti um aroma familiar. Um grupo de três, quatro pessoas estavam fumando maconha. Quase pedi uma bola, mas a erva definitivamente não faz-me bem, de jeito nenhum.
Pouco antes de irmos embora, um rapaz, de aproximadamente 20 anos, pegou uma mesa e jogou em outro sujeito, que conseguiu se esquivar do ataque. Em seguida, ele partiu para cima do “agressor” e deu-lhe um murro na cara. A pancada doeu em mim ao vê-lo cair no chão, com o rosto ensanguentado.
Lembro pouco do segundo dia, cujo bar estava – amém! – aberto. Só concentrei-me em enxugar as latinhas de 269 ml de Brahma que eu ia buscar no bar a cada 10 minutos. Talvez eu tenha pulado, cantando e gritando músicas que nem conheço, ou apenas fiquei com os braços cruzados, escorado no bar, com xingamentos da pior estirpe à ponta da língua.
“Me avise quando você estiver perto ruim”, orientou-me José.
“Beleza”, respondi. “Mas não vai ser necessário, pois, de uns tempos para cá, criei uma assustadora resistência a toda e qualquer substância ilícita”.
Bem, sem dúvida, o melhor a se fazer era ir embora. Se no sábado os shows não estavam lá grandes coisas, no domingo piorou. Em minha cabeça, eu reproduzia Mulheres, do Martinho da Vila, tentando lembrar-me de antigas paixões, de modo a passar o tempo naquele inferno chamado Villa Mix. No ano que vem, com certeza, dispensarei a oportunidade. Já conheço o ambiente. Sei como é. Dispenso. Obrigado!