Marcus Vinícius Beck
Sarcasmo e delírio num colégio militar

Arte: Heitor Vilela
Minha capacidade de rebeldia já me levou para muitos lugares: faculdade de jornalismo na PUC Goiás e amizades extremamente loucas, cujas histórias de subversão, medo, delírio e utopia assustaria o mais burocrata dos capitalistas. Deve haver mais coisas para contar, mas minha memória drasticamente afetada por biritas de má procedência não me deixam lembrá-las. Atenho-me ao fato.
O ruído da sala me era familiar. Eu sempre estudei em colégio público, mas discordava veementemente do método dos professores. A maioria deles estavam à serviço do capital, isto é, queriam lhe transformar em futuras mãos de obras para o mercado de trabalho. Se você esboçasse qualquer indícios de criticidade, a coisa não seria nada boa para o seu lado. Mas se você aprendesse a dançar conforme a música, meu amigo, a engrenagem ganharia mais um integrante que possivelmente estaria na chefia de alguma empresa do ramo financeiro daqui alguns anos, desde que não falasse nada, nem desconfiasse das autoridades – o que sempre fiz.
Eventualmente, onde estudei, alguém conseguia passar no vestibular, mas nem todo mundo tinha essa sorte e, os que ficavam para atrás, apelavam para o ensino privado.
Eram 14h... Eu estava suando como se estivesse perambulando pelas ruas do Oriente Médio. O sol distorcia a Rua das Gaivotas, no Setor Colina Azul, em Aparecida de Goiânia. Lá, ficava o colégio militar Colina Azul, e eu estava designado a fazer uma reportagem de 3000 toques para o Impressões, jornal laboratorial das disciplinas de fotojornalismo, redação jornalística 1 e 2 e edição jornalística do curso de Jornalismo PUC-GO. Minha pauta era tentar mostrar como era o colégio militar, entrevistar alguns alunos, professores e pedagogos.
Ora, o que poderia ser melhor para fazer a reportagem do que ir pessoalmente assistir uma aula no Colina Azul? Fiquei todo empolgado.
Idiota. Fiz o dever de casa e fucei vários em sites que falavam sobre colégios militares. Fruto de parceria público/privada, as escolas contam com militares no corpo docente. E, não se engane, eles também lecionam humanidades, como Filosofia e Sociologia. A subdiretora do comando de ensino da Polícia-Militar, tenente-coronel Rosângela Pereira, porém, afirmou que os colégios são públicos. “Pertencem à rede estadual de educação. A única diferença é que eles são administrados pela PM”, declara ela. No dia-a-dia, os estudantes seguem regras de comportamento, como bater continência para "professores" fardados. Por exemplo, se um aluno não for à aula uniformizado, não entra na instituição.
Os colégios, ainda, contam com vestuário próprio para as aulas de Educação Física. Embora sejam “públicos”, cobram taxa de seus alunos, que varia de unidade para unidade, podendo ser mais de R$ 200. Até o final do ano passado, Goiás tinha 20 colégios militares localizados em 17 cidades do Estado. A expectativa é que a quantidade aumente neste ano.
Logo na entrada, soltei à uma moça um monólogo interminável de praticamente tudo que li e ouvi sobre colégios militares. Eram coisas como a importância da ordem pública e do civismo “para essa sociedade que não sabe zelar pela ordem e pelos bons costumes”. Se eu ficasse mais 60 segundos discorrendo com ela eu iria pôr meu filho – que nem tenho - para estudar num colégio desses.
Ao colocar os pés na escola, a primeira coisa que fiz foi procurar o pedagogo Ricardo Gomes da Silva.
Após vê-lo, perguntei se eu poderia assistir uma aula com os alunos. “É para quê?”, quis saber ele. Com um sorriso no canto da boca, eu disse: “É para um trabalho da faculdade”. Mais calmo e menos assustado, indagou: “Você estuda aonde?”. Porra, Jesus Cristo, quando esse cara vai parar de me interrogar? O jornalista aqui sou eu, e não você, caralho! “Na PUC, senhor, faço jornalismo e estou apurando uma reportagem sobre colégios militares. Seria muito, muito bom se eu pudesse assistir uma aula em alguma turma”, expliquei.
Agora sim, Ricardo estava tranquilo e, sossegadamente, ele foi ver se havia algum professor disposto a me autorizar para acompanhar uma aula.
Minutos depois, ele veio com Edna dos Santos, professora de geografia há 10 anos no Colina Azul e fã convicta dos colégios militares. Logo de cara, mandei: “Por que a senhora é favorável à militarização do ensino público no Estado?”. Sem pestanejar, ela emendou: “Porque os alunos aprendem a ser comportados”. Um pouco surpreso com a sinceridade da professora, eu entrei na sala de aula e, imediatamente, todos os alunos ficaram me olhando como se eu fosse uma espécie de galã de cinema pobre, feio, suado e agoniado. A professora contou que eu era estudante como eles, e que estava fazendo um trabalho da faculdade.
Após a conversa mole de Edna, sentei-me no fundo da sala para acompanhá-los. A aula era de Geografia, e ali consegui reviver alguns momentos do meu ensino fundamental e médio. Mas por pouco não saí correndo da sala: não tenho nenhuma saudade deste período. Senti-me como se estivesse dentro de uma panela cozinhando a 150°C. Aliás, na faculdade vou à aula altamente chateado de vez em quando, porém há professores que me cativam a assisti-los, e aí a árdua disposição de vê-los torna-se agradável. Todavia, às vezes penso que nem o mais cretino dos homens merece assistir aula pela manhã. Seria mais produtivo iniciar sua jornada estudantil, seja em faculdade ou escola, depois das 9h.
Cerca de 15 minutos depois, a professora disse que sua aula havia terminado, mas antes troquei rápidas
palavras com os alunos sobre o ensino militarizado. “Eu gosto, né. A gente aprende a ter respeito pelo outro”, declarou o primeiro. “É bom, né. A gente aprende a ter respeito”, disse o segundo. “É gratificante, né. A gente aprende a fazer o bem”, frisou o terceiro.
Desisti. Fui caminhando lentamente até a professora, que estava sentada em sua cadeira, corrigindo atividades. Sentei-me ao seu lado. “Como são os alunos?”, perguntei. Ela me olhou diretamente nos olhos e respondeu: “São bons”. Insisti: “Eles gostam do colégio?”. Dessa vez sem olhar, disse: “Sim!”.
Está difícil, pensei. Mas tudo é difícil na vida, já diria aquele velho ditado. Os colégios militares, sem dúvida, estão formando alunos comportadíssimos que ingressarão na faculdade sem senso-crítico - especialmente que serão frutos da parceira público/privada. Quiçá eles bradarão nos bancos acadêmicos que a salvação do Brasil estará sobre Jair Bolsonaro, ou em seu digníssimo filho, Eduardo Bolsonaro. Sim, porque, Jesus Santíssimo Senhor, esses energúmenos não serão eleitos, jamais. Não pode.Torçamos.
O fato é que a comunidade de Aparecida de Goiânia compactua com o modelo de ensino ancorado nos ideias colocados em prática durante a ditadura. Foi que o constatei ao conversar com algumas mães de alunos. Uma, inclusive, chegou a dizer-me que, após matricular filho nessas escolas, o comportamento do menino mudou dantescamente. Adriana Novaes, vendedora da loja em frente ao Colina Azul, também concordava com a militarização dos colégios. “Sou a favor, sim, porque agora eles entram aqui na loja e são comportados”, asseverou ela.
Parei no primeiro bar que encontrei. Comprei um cigarro picado. Tive uma ideia: tenho de voltar ao Colina Azul e conversar com o diretor daquela espelunca. Atravessei a rua, fumando e andando rápido e, ao chegar em frente à escola, estava desnecessariamente cansado. “Eu gostaria de falar com o diretor, sou estudante de jornalismo e estou fazendo uma matéria para o jornal de faculdade”, expliquei, pela milésima vez. “Só um minuto, senhor”.
Espero, ora, fazer o quê?
Depois de uns 10 minutos, o diretor apareceu e, instantaneamente, perguntou qual era a graça de minha visita, novamente. “Olha, eu esqueci de perguntar algumas coisas”, tranquilizei-o. Ele me olhou, agora seriamente preocupado, talvez querendo me internar num sanatório. “Qual seria sua pergunta?” Suspirei, e disse: “A comunidade nunca questionou vocês?”. Com as sobrancelhas erguidas, o sujeito brada: “Não!”.
Agradeci. Era previsível.
Virei as costas, acendi um cigarro e pensei: porra, que pessoas mais monossilábicas desse colégio militar.