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  • Guilherme Turati

CARA GENTE BRANCA E A REPRESENTATIVIDADE NEGRA NA MÍDIA

O que precisávamos, no momento em que precisávamos.

"O paradoxo da educação é que ao ter consciência, passa-se a examinar a sociedade onde se é educado", assim é dada a partida para uma das mais recentes séries originais Netflix, Dear White People (Cara Gente Branca). É com uma frase de James Baldwin, um escritor, poeta e critico social afro-americano, nascido em Nova Iorque, que agora, após 30 anos de sua morte, volta a ser discutido em peso graças ao filme I’m Not Your Negro (Eu Não Sou Negro), baseado em seu inacabado livro sobre o racismo nos EUA.

A série é uma adaptação do filme independente de 2014 de mesmo nome e segue um grupo de alunos negros que ingressaram em uma importante universidade de elite, cujo alunos são predominantemente brancos. A produção já estreou com uma aprovação de 100% da critica pelo Rotten Tomatoes, contrastando com uma aprovação de 56% da audiência (algo que discutiremos mais adiante).

Dear White People pode ser vista como uma espécie de fábula da representatividade negra na sociedade de maneira bem direta, discutindo assuntos importantes como racismo, segregação dentro da universidade entre os alunos negros e brancos, Blackface (maquiar-se e/ou fantasiar-se como alguém negro, geralmente usado em situações depreciativas ou “cômicas”), o mito do racismo reverso, violência policial, apropriação cultural e até mesmo relacionamentos inter-raciais que são ainda vistos na mídia como um completo tabu.

Ainda há uma abordagem da temática racial não apenas da perspectiva de quem protesta contra o racismo ou o comete, Cara Gente Branca também mostra as vitimas silenciosas e como o meio social pode influenciar alguém, quando o oprimido se junta ao opressor para poder se integrar ao ambiente. A série usa a veia cômica para facilitar a descida garganta abaixo da realidade em que vivemos, daquilo que acontece periodicamente embaixo de nossos narizes e muitos ainda fecham os olhos para aceitar ou discutir tamanho problema. O drama veio na medida certa, no momento certo.

Em entrevista ao site IndieWire, o diretor e criador, tanto do filme quanto da série, Justin Simien disse: "Este show é sobre pessoas de cor lidando e tentando se comunicar com uma sociedade que realmente não se faz sempre um espaço confortável para eles" e completou "A hiper-realidade é um lugar mais confortável para fazer sátira para mim."

Contando com um belo trabalho de fotografia, cativante elenco, roteiro afiado, e direção no ponto, ainda usam a técnica estrutural vista em Orange Is The New Black, série também da mesma plataforma, onde cada episódio mostra o ponto de vista de um personagem em especial, não repetindo o erro do filme em que muitos personagens acabam ficando como meras caricaturas.

Porém a série peca na falta de aprofundamento em alguns personagens, problema que se dá pela pouca duração dos episódios e uma temporada curta com apenas 10 episódios, e no mal uso de seu narrador, que acaba se tornando meio ausente quando comparado com outros shows que utilizam a mesma técnica, pegando o exemplo de Pushing Daisies onde sua presença era constante e ele acabava se tornando uma espécie de personagem adicional.

Um destaque é o quinto episódio, que foi dirigido pelo brilhante diretor Barry Jenkins (responsável pelo ganhador do Oscar de Melhor Filme em 2017, Moonlight), um tocante e intenso episódio que traz a tona o confronto de policiais com jovens negros, tema que vem sendo bastante discutido desde os casos em 2016 que receberam uma maior atenção da mídia e da internet em que diversos jovens negros e desarmados foram mortos por policiais, tanto na França quanto nos Estados Unidos, desencadeando uma grande revolta e o crescimento do movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam).

Em entrevista a Vulture, Jenkins contou um pouco sobre como foi filmar o episódio focado no personagem Reggie. “O que acontece nesse episódio é mais parecido com o que você esperaria que acontecesse no mundo de Moonlight do que no mundo de Dear White People.” disse.

“Dirigir essa cena foi viver a verdade de uma maneira muito orgânica, há sempre a possibilidade de este tipo de coisa acontecer, que a ameaça está sempre presente na sociedade americana em que vivemos hoje.”

Sobre o shot final do episódio, Barry ainda completou dizendo, “Eu pensei, bem, a esta altura nós sabemos como seria se Reggie nos observasse, então agora eu quero que Reggie sinta como se estivéssemos olhando para ele. Eu quero que a câmera deslize sobre ele sutilmente, da perspectiva do telespectador...”

“Eu tive que perguntar a mim mesmo, bem, como posso evitar ter que dizer a ele quando olhar para a câmera, enquanto continuava me certificando de que Marque olhasse para a câmera no momento certo, para que este momento atingisse seu ápice emocional mais completo? Eu percebi que poderíamos fazer isso se usássemos um dolly, porque quando você faz aquele tiro com um dolly o ator pôde realmente sentir a câmera se aproximando dele.”

“[...] É algo bastante Dear White People, aquele tiro, especialmente no final do episódios onde eles estão olhando diretamente para a câmera.”

Velhas problemáticas e a chegada de novos ares

Ter seu conteúdo distribuído pela Netflix é o sonho de qualquer criador de conteúdo: o material chega para 75 milhões de usuários espalhados pelo mundo simultaneamente, sendo o maior “canal pago” do mundo em questão de audiência. Um burburinho em redes sociais é inevitável a partir do momento em que uma temporada ou filme é liberado: não importa se for para condenar ou glorificar, a internet vai parar pra falar do novo lançamento da Netflix. O problema é que essa grande popularidade parece não afetar todas as produções do serviço, mesmo que a série “deixada de lado” em questão seja aclamada pela crítica ou não.

Um bom exemplo é a série The Get Down, idealizada pelo indicado ao Oscar Baz Luhrmann, que trouxe um conceito completamente diferente das séries originais produzidas pelo canal até então: um musical com elenco majoritariamente negro. A série foi bem cotada nos maiores agregadores de crítica, com 74% de aprovação no Rotten Tomatoes. Mas a série definitivamente não foi tão bem comentada quanto os lançamentos anteriores, o que acarretou em seu cancelamento, nada de uma segunda temporada.

The Get Down além de abordar o subúrbio negro, ainda trouxe temas como bissexualidade, fanatismo religioso, elitismo em universidades… Porém nada que fizesse a Netflix enxergar alguma relevância que merecesse sua divulgação.

O caso não se limita somente aos títulos que trazem em sua maioria personagens negros, séries com protagonistas femininas também costumam desaparecer da lembrança nos executivos quando se reúnem para discutir suas propagandas e divulgações em diferentes mídias.

13 Reasons Why foi última produção de peso lançada pelo serviço de streaming, diferente de The Get Down e Dear White People, recebeu total atenção da empresa, contando com diversos posts promovidos em redes sociais e até mesmo propaganda no Snapchat. E para a surpresa de ninguém (mesmo sem necessidade alguma) ainda foi renovada para uma segunda temporada em menos de um mês. Outra vitória para um casal branco talvez?

Dear White People ainda estreou com uma baixa nota em meio ao usuários do Rotten, o que talvez seja resultado do medo. As pessoas fogem por medo de ter seus erros apontados, ter alguém apontando seus privilégios, e se assustam ao ver um personagem negro sendo escrito de forma aprofundada e com um lugar no mundo.

A série inclusive também foi alvo de uma massa que se sentiu ofendida e atacada pela produção, alegando a velha lenda do racismo reverso. Muitos nem chegaram a assistir a série em si, o título já foi o suficiente para causar um frevo nas redes sociais, antes mesmo do lançamento já haviam pessoas planejando uma espécie de boicote.

Anos atrás era difícil encontrar programas em que os protagonistas negros não se resumiam apenas à estereótipos, destinados sempre para papéis do amigo engraçado que sabe tudo sobre esportes, a mãe ranzinza, o pai mão de vaca e casca grossa. Grande parte das séries protagonizadas por famílias negras eram comédias.

Famosas produções dos anos 80 e 90, como Arnold e Fresh Prince of Bel Air não tinham muito espaço para discutir temas importantes para os negros, eram raros os episódios onde havia um aprofundamento em problemas reais. Arnold ainda tinha uma atmosfera onde isso era mais comentado, pelo fato dos irmãos negros terem sido adotados por uma família branca, mas Fresh Prince ainda demorou anos para tocar na ferida.

Depois do fiasco do Oscars So White, a Academia passou por uma renovada, novos votantes tomaram lugares nas cadeiras trazendo uma maior diversidade. Talvez seja esse o motivo da chuva de diversidade que vimos esse ano

Quem esperava que o resultado do prêmio mais importante da noite iria para Moonlight? Um filme sobre um jovem negro, periférico e gay, uma produção sem grandes efeitos visuais ou maquiagens surpreendentes. Ou que o Oscar de Ator Coadjuvante iria também para um ator negro.

Nesse ano todos esperávamos que o vencedor seria La La Land, até mesmo por se tratar de uma grande homenagem para Hollywood, e por se encaixar perfeitamente em tudo que a “Antiga” Academia (se é que não sabemos se já podemos intitular assim) geralmente gosta de entregar a estatueta.

“Diversidade não vende” bradou a editora Marvel no último mês, alegando que a culpa de suas baixas vendas em quadrinhos vem dos personagens étnicos, o que vem sendo provado cada vez mais ser uma afirmação errônea; Get Out é um dos filmes independentes que mais faturaram esse ano, sendo a maior bilheteria de estreia desses, com cerca de 156 milhões de dólares (e contando), e também se tornou um dos queridinhos da critica. O filme é protagonizado por um negro. I’m Not Your Negro também inteira a lista.

Os tempos vêm mudando, diversidade é sim algo necessário hoje em dia, retratar o mundo como ele é, é de extrema importância para aqueles que vivem uma em meio a essa realidade e para os jovens que vão crescer vendo essa representatividade, vendo pessoas iguais a ele ou ela na televisão, no cinema, tendo modelos para seguir. Foi exatamente o que aconteceu com Rey e Finn, do novo filme de Star Wars, os personagens instantaneamente se tornaram modelos para as crianças, ver uma mulher e um afrodescendente encabeçar uma das maiores franquias de todos os tempos com toda certeza causou um impacto.

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