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  • Guilherme Turati

Os Embalos de Goiânia à Noite

Joan Jett estourava nas caixas de som enquanto crias dos anos 90 cantavam o refrão à todo pulmão. As luzes piscavam tanto quanto o magricela chapado no canto. Para o jovem rapaz com o grupo de amigos cada batida pesada da bateria parecia durar um ano. As luzes giravam, baterias batiam, junkies piscavam.


Era um padrão.


Primeiro cigarro.


Era vez de Franz Ferdinand comandar a noite. Essa geração de rebeldes com causas demais balançavam suas cabeças como se estivessem no Woodstock décadas atrás. Alguns, dependendo do que haviam usado, realmente poderiam estar. A garota de olhos fechados contradizia a postura que havia mantido até agora, havia se rendido a musica, tirara a cara de birra.


Após algumas doses de vodka a musica passara para clássicos dos anos 2000, a musica que cantavam sem entender uma única palavra quando pequenos agora pareciam voltar com tudo em sua mente, como um velho conhecido que se senta no banco de trás de sua memória durante aqueles momentos de êxtase e nostalgia que nos assombram sem motivo aparente em algumas noites em claro.


A placa de proibido fumar parecia mais ignorada que a checagem da veridicidade das identidades na entrada, bastava uma carinha bonita que o guardião das chaves liberava a passagem para a terra prometida.


Segundo cigarro. Terceiro cigarro. Primeiro palheiro.


Quando os passos pareciam ter se tornado pesados demais, o chefe do bando de vira-latas decidiu chamar a ninhada para voltar pra toca, como bons garotos todos assentiram com as cabeças.


Boom. Bateram as portas e se encostaram nas janelas e nos encostos dos bancos do carro. Segundos depois da partida, o quarto cigarro foi sacrificado, ele passava de mão em mão e parecia queimar a garganta de todos aqueles que se entregavam à mãe-nicotina.


As luzes da cidade pareciam ainda mais belas quando borradas pela alta velocidade, os arcos da avenida 85 cresciam e cresciam, e logo haviam se tornado outro borrão, a praça da t-25, embora estivesse vazia, enchiam aquelas cabeças de fantasmas e rápidos flashes de uma adolescência revoltada e com um grande desejo de auto-afirmação.


Quando adolescentes nós procuramos essa constante afirmação, algo que dê sentido para nossas atitudes de rebeldia, talvez seja por isso que acabamos com cigarros em nossas bocas e álcool correndo por nosso sangue. Isso nos lembra o quão jovem somos e como ainda temos muito tempo aqui, por que não importa o quanto isso seja ruim para nós, no final do dia esses garotos vão pra casa e riem sobre suas vidas desperdiçadas enquanto leem algum poeta da geração beat.


É incrível quantas distribuidoras de bebidas e bares podem caber numa cidade, quantos menores de idade compravam seus vinhos baratos, quantos senhores conversavam sobre os famosos “velhos e bons tempos” enquanto bebiam com seus amigos e jogavam algum jogo de cartas. Afinal, a capital dos bares tem que honrar seu nome.


O carro parou e eles desceram, cambalearam em meio a gritos histéricos até o elevador, até mesmo o mais simples tropeção parecia ser a coisa mais engraçada do mundo. Plim. Décimo terceiro andar, anunciou a voz do elevador. Na medida em que entravam, corpos caiam sob os sofás e almofadas no chão.


Quinto cigarro. Seguido de um sexto em uma outra boca e instantes depois um sétimo na boca da garota que havia se acomodado na cama principal com sua namorada.


Depois de ouvirem tantas músicas animadas na boate em que frequentavam com uma regularidade não tão saudável no Setor Sul, pareceu apropriado voltarem pra rotina de melodias melancólicas, cantadas por almas atormentadas, com uma dor que estranhamente parecia ser compreendida por todos eles. Por mais que nunca dissessem isso em voz alta.


Enquanto Elliot Smith ecoava na sala, o agora satisfeito casal se juntara ao grupo na sala. A voz doce do cantor norte-americano parecia ter os levado á um universo particular, alguns se deitaram no colo do que estivesse mais próximo e outros brincavam com os dedos entre si, os carinhos com os dedos na mão pareciam significar o mundo naquele momento.


Conversaram por horas sobre a vastidão do espaço até o quanto pés eram estranhos, o sentimento de estar em casa os faziam não se preocupar com o quão besta aquele assunto poderia parecer para um observador de fora.


O mais magro dos vira-latas se sentou no parapeito da janela e perdeu o olhar pelas ruas de seu querido Setor Bueno. O guarda olhava as poucas pessoas que passavam ali fumando e ansiava por um cigarro, não fumava nenhum desde a parada que deu na lojinha do posto assim que havia saído de seu primeiro emprego.


Haviam se passado alguns dias desde que um garoto se suicidara por não aguentar mais os ataques que sofria, é bizarro como palavras podem atingir alguém não é? Um menino tão novo, recém chegado no ensino médio, nem passaria pela traumatizante experiência de vestibulares ou a pressão absurda dos cursinhos de Goiânia. Quase ninguém ali parecia se incomodar mais com aquilo, mas ainda martelava na cabeça do mais novo, não fazia muito tempo desde que quase fizera a mesma coisa. Os laços invisíveis que sentimos ter com alguém por conta de uma situação dessas as vezes assusta.


O dia nasceu e nenhum olho havia se fechado, alguns se sentaram na janela e observaram os carros passando, pareciam estar com o olhar longe novamente, como se aqueles poucos carros que passavam a toda velocidade na avenida os remetessem a coisas grandiosas. Os carros aproveitando os últimos momentos de liberdade para correrem o quanto quisessem não eram os únicos protagonistas desse momento, a padaria estava abrindo, um rapazinho mirrado não muito mais novo que aqueles que o observavam levantava as grades pesadas do estabelecimento, não reclamava, afinal precisava comprar o remédio da irmã.


Um grupo caminhava aos tropeços pela praça enquanto voltavam para casa após uma noite de bebedeira. Novamente, os laços invisíveis que criamos com alguém, mesmo sem contato algum, por conta de situação que significa o mundo, são assustadores.

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