Marcus Vinícius Beck
Nosso camisa 10, doutor

Amigo boêmio, peço licença para dirigir-me ao doutor Sócrates, o capitão da seleção de 82, por meio de uma carta epistolar mergulhada em lirismo etílico e saudosismo futebolístico, afinal de contas é impossível não evocar seus ensinamentos meses antes duma Copa do Mundo, quando o futebol brasileiro suscita esperanças no torcedor, mas sacramenta dúvidas acerca do temperamento de nosso principal jogador.
É, meu caro Sócrates, nosso camisa 10 está preocupado em ostentar, andar de carrão pelas ruas da Europa, em meio aos problemas em que está envolvido por causa da tal transação do Santos para o Barcelona e do Barcelona para o PSG. Caso algo não saía dentro do esperado, o homem vira as cotas, fica bicudo e vai embora, como uma criança chorona. A pátria de chuteiras, perdão em apropriar-me da metáfora do tio Nelson Rodrigues, magrão, ainda está arrogantemente descalça.
Em vez de libertador, doutor, nosso futebol consolidou-se como mero exportador de jogadores para verdadeiras grifes do Velho Continente, nossos treinadores estão boçalmente defasados, nosso campeonato nacional é cada vez mais feio de se ver, nossos jogadores que ainda atuam por aqui estão loucos atrás de um contrato milionário, alguns até topam jogar na Ásia para ganhar alguns vinténs milionários.
Falar nisso, outro dia, eu estava conversando com meu avô, corintiano de carteirinha, desde o período em que o Timão amargurou 23 anos de fila, e ele disse, cabisbaixo, que a seleção não é lá essas coisas, e a gente não pode nutrir tanta expectativa num time que pode nos decepcionar. Todavia, diz ele, é terrivelmente complicado aceitar de bico calado críticas ao escrete, pois em época de Copa 210 milhões de pessoas calçam chuteiras e debatem futebol na casa da família, no bar, no prostíbulo, no almoço com o pessoal da firma, em época de Copa todo mundo fala de futebol em todo lugar.
Calcanhar de ouro, meu avô viu a carreira de Pelé, Tostão, Jairzinho, Gerson, Rivellino, Garrincha e tantos outros do início ao fim. É por isso que ele não se conforma com o nível técnico da bola jogada no País. Ele não consegue assistir uma partida sem fazer alusão ao teu futebol, ao teu toque cerebral de calcanhar, nem ficar mais de três minutos sem bradar algum xingamento aos jogadores, tamanho o horror que assiste.
Aliás, tu sabes bem como é esse negócio de torcedor, às vezes o sujeito fica meio abitolado, se for do time do coração então lascou tudo de uma vez. Já vi até amizade se desfazer num piscar de olhos por conta do futiba, doutor. Para teres uma ideia: até no botequim, sagrada instituição boêmia e etílica, a coisa está feia, pois ninguém nutre confiança no escrete de Tite.
Outro dia, fui numa distribuidora de bebidas perto de casa, e dois caras discutiam sobre o clássico entre Goiás e Vila. Ambos estavam visivelmente transtornados. Este é o clima antes da Copa, Magrão. Alguns até dizem que o escrete nacional é razoavelmente bom, mas não possui essa bola toda propagada nas redes sociais.
E, para finalizar magrão, li a tua biografia Sócrates, escrita pelo jornalista Tom Cardoso. Gargalhei com tuas histórias. Hombre, desculpe este portunhol safado, tu foste risonho até no final da vida. Quero ser assim quando crescer! “Aqui na terra vão jogando futebol, muito samba, muito choro e rock n´roll”, como diz Chico. É isso, doutor. Forte abraço.