Marcus Vinícius Beck
Deploração e esquisitice: uma história deprimente no interior goiano

Foto: Júlia Lee
Estávamos em algum lugar perto da Praça do Coreto, ao lado de uma jukebox, ouvindo Zezé di Camargo e Luciano ou Chrystian e Ralf, quando a anfetamina começou a fazer efeito. Tenho certeza que falei algo do tipo “acho melhor a gente se aprontar para sair, porque as meninas estão a fim de curtir um forró essa noite, ou você sair querer ficar com a cara mergulhada nessa merda de mesa...” E de repente acabamos sendo cercados por pensamentos altamente sórdidos que nos acometeram no pior momento possível da noite: com a cabeça cheia de cerveja, campari e drogas de procedência duvidosa.
O silêncio imperou entre nós. Meu camarada, o jornalista Thompson Silva, estava completamente chapado e passava a mão pela testa em um esforço desnecessário para amenizar o suor que escorria pelo seu rosto. “Cara, você está bem?”, perguntei, olhando para ele preocupado com o que poderia acontecer daqui para a frente. “Tô, sim. Acho que aquela pizza de alho não me fez bem”, respondeu.
Tive vontade de cair na gargalhada, mas avaliei que essa não seria a reação mais apropriada para o momento. Então apressei o passo para subir uma escada que dava para o hotel onde estávamos hospedados. Acendi um cigarro. “Cara, masque uma balinha, porque cachaceiro sempre anda com esses utensílios no bolso. Eles têm mil e uma utilidades, inclusive servem para enganar o chefe quando você chegar meio bêbado no trabalho e não queimar o filme com o mina após beber por horas”, disse Thompson, girando o trinco para entrar no quarto.
Peguei uma cerveja na recepção. Eram quase duas horas da manhã e ainda tínhamos firmado um compromisso valioso em um estabelecimento quase na periferia da cidade. Seriam caminhadas difíceis até chegarmos ao lugar. Até lá, era bom que essa porra de anfetamina saísse de nossos corpos. Não tinha mais volta. Sim é sim. Tomou, tomou. Ponto.
Imagine só: “Jornalista, com credencial no pescoço, desmaia drogado no salão de dança”.
Jesus Cristo, por que eu ainda não joguei fora esse negócio? “Xico, sério que você vai andar por aí bêbado e chapado com uma credencial de imprensa no pescoço?”, questionou Thompson, recobrando rapidamente a consciência. Olhei-o de cima a baixo, e dei de ombros. “Ninguém nessa cidade irá incomodar um jornalista falido do Diário de Notícias e do site Transmutação”, pontuei. Passando pasta na escova de dente, Thompson desdenhou: “Eu como seu amigo oriento você a evitar entrar em situações constrangedoras no decorrer da noite”.
O filha da puta estava certo. Minha imagem era terrivelmente desgastada com Maia por conta de alguns episódios lamentáveis que protagonizei nos últimos dias. Não era nada do tipo dostoievskiano, pelo contrário: foram meia dúzia de ímpetos ordinários, palavras mal colocadas, que poderiam originalmente ser de Charles Bukowski ou John Fante enquanto caminhavam pelas ruas de Los Angeles sem esperança e sem dinheiro para comprar um cigarro. Coisa de bêbado com sérias tendências ao alcoolismo, embora eu acredite piamente que funciono melhor com o fígado abastecido por algum destilado ainda desconhecido pelo homem moderno.
Ora, será que haveria literatura de qualidade com um bando de gente sóbria sentada em frente a máquina de escrever, tentando fugir da loucura e da realidade? Literatura, assim como o jornalismo, precisa escorar cotovelos no balcão dos bares para ir atrás do predicado certeiro e para aturar as dores provocadas por medo e delírio diário.
Bem, para que essa narrativa desvairada faça algum sentido é preciso voltar algumas semanas no tempo. Fui credenciado pelo Diário de Notícias e pelo site Transmutação para cobrir o Festival Internacional de Cinema Ambiental (FICA) na Cidade de Goiás. Foram cinco dias de trabalho intenso. Eu acordava, levantava, tomava café da manhã e caia na labuta sem hora para parar. À noite, bebia umas três, quatro garrafas de Antarctica só para não perder o costume. Em seguida, caia na cama e no dia seguinte a mesma rotina me esperava.
Devo salientar também que assisti poucas mesas de debate e filmes que foram exibidos no evento. Inclusive, durante o último curta-metragem cai no sono enquanto um diretor português fritava a mente da platéia com uma sequência de imagens deprimentes. Acordei quando um cara estava olhando para mim com o semblante fechado. Minha reação foi levantar da cadeira e cair silenciosamente, buscando evitar ser notado pela galera. No caminho para a rua, cogitei a possibilidade de ter dormido ou até mesmo roncado.
Por essas e por outras, nem preciso dizer que este texto se trata de um grande fracasso, de um projeto longo, de cunho literário, que tinha a intenção de transformar o jornalismo goiano em algo jamais visto na imprensa brasileira. Não é necessário dizer que essa ideia demente não foi para a frente. Não era para ser feio, triste, grotesco e dantesco… nada disso.
Porém, a merda é que eu vivi seis dias tendo de trabalhar bastante e, vendo agora, enquanto dou vida às experiências que tive lá, creio que Maia não fez nada de mais em relação a mim, o que provocou uma combustão jornalística jamais vista em um sujeito com sérias tendências a praticar qualquer coisa que gere problema. Por outro lado, evitei topá-la durante o festival em função dos sentimentos que me acometeram nos últimos meses. Na verdade, creio que seja a decisão mais lúcida que tomei nos últimos anos, embora eu sinta saudades de compartilhar boa parte dos nossos sonhos, desejos e sensações.
Tudo mudara quando eu implorei pela presença de Thompson Silva. Estava me sentindo como Paul Kemp em meio a um paraíso de magnatas barrigudos com olhares furiosos esperando a oportunidade certa para ganhar dinheiro. Mas não era necessariamente dessa forma. Havia um bando de ambientalistas, artistas e cineastas preocupados com o meio ambiente, ainda que não medissem esforços para atirar latas de cervejas e bitucas de cigarro pelas ruas da cidade. Bastou três ligações em uma tarde de sexta-feira para eu convencê-lo a beber uma relés cerveja comigo na noite interiorana. Horas depois, o desgraçado despontou no centro histórico, de óculos escuros, chapéu de mafioso assassino da década de 1920, calça e camiseta pretas.
Saudei-o. “Porra, não boto fé que você veio para cá”, falei, surpreso. Thompson me abraçou. “Cê sabe que estou aqui única e exclusivamente por sua causa, né?”, respondeu.
Balancei a cabeça, concordando.
Enquanto a isso, não havia a menor dúvida: antes do meu camarada pôr os pés na cidade eu estava suprindo minhas necessidades básicas etílicas e nicotínicas por meio de favores geralmente atendidos por terceiros.
Ao ver Thompson Silva chegar, Maia ficou apreensiva e de repente o som do silêncio imperou sob a mesa. Então Thompson puxou uma cadeira, e disse:
“Você vai beber hoje, né, Xico?”
“Hein?”, me fiz de desentendido.
“Não vim até aqui para você dar para trás, né?”
“Ele não pode, precisa trabalhar amanhã”, afirmou Maia.
“Porra, Xico”, desdenhou Thompson, com cara de deboche.
“A gente tá trabalhando pesado aqui”.
Maia é como se fosse uma versão feminina do id da teoria freudiana.
Fiquei calado, mas não havia a menor dúvida de que eu teria de arrumar um jeito para fazer a coisa etilicamente fluir. Ora, pense bem, imagine um filha da puta se mandar do sagrado conforto do seu quarto para beber todas com um fodido em uma cidade que fica a 130 quilômetros de distância.
Você vai ver? Pobre infeliz... Considero-me um sujeito que ama, mas não estávamos em um momento propício para ouvir um clássico da música sertaneja antiga. Eu mal conseguia escutar as frases que Zezé cantava... estava lutando para seguir em frente. Era nossa última chance de perambular pela noite da antiga capital do Estado. E, de certo modo, era uma reafirmação honestíssima do nosso estilo de vida. Sim, somos dois seres que fazem esforços brutais para levantar copos de cerveja. Malhamos incessante e ensandecidamente nossos fígados e pulmões. Em síntese, éramos uma espécie de Hemingway, John Fante e Hunter Thompson bebendo café da manhã em algum hotel vagabundo após confusões homéricas e monumentais durante a madrugada.
Fotos: Júlia Lee
Meu camarada me perguntou aonde era “o tal forró”. Respondi-lhe que “era por ali, não sei explicar, apenas sei que é fundamental caminharmos como dois animais”. Passamos por uma distribuidora de bebida, mas o cara estava praticamente fechando seu estabelecimento. Tivemos de convencê-lo a nos vender duas latinhas de Bavária. Em um primeiro momento, o cretino se mostrou irredutível e eu precisei dizer que Thompson era um alcoólatra sociopata e, caso não bebericasse nada que tivesse álcool nos próximos minutos, ele poderia se tornar um cara horripilante que ia trazer vários problemas para a pacata cidade interiorana.
“Você é um mentiroso sensacional”, elogiou Thompson. Não falei nada. “Além do mais, eu precisava molhar minha palavra com essa cerveja aqui, senão iria perder o controle da situação facilmente”, atestou. Dei de ombros. “Como se isso fosse alguma novidade para mim, né?”, indaguei, retoricamente. “Inclusive, eu como seu amigo concordo que você deve sempre se manter bêbado para segurar a onda e suportar a noite”, falei.
O que estava rondando minha naquele momento era o rosto de uma ruiva que conheci mais cedo, na Praça do Coreto. Foi amor à primeira vista. Lembro que comecei a discorrer sobre meu ofício de jornalista falido e ela achou sensacional. Fiquei emocionado, mas antes de puxarmos conversa tive de cortar um cara esquisitamente chato que a chamou de “gata”. Ora, não há nada mais inapropriado, cínico, cretino, canalha e nojento do que alguém utilizar esse vocativo para se referir a uma mulher em meio a músicas sertanejas dos anos 90, cerveja e com a cabeça transbordando alucinações.
Então fiz uma completa análise da conjuntura, e disse:
“Me desculpe ser meio mal educado, mas quero te fazer uma pergunta meio esquisita”.
“Diga”, respondeu.
“Qual é o seu nome?”
“Esse era a pergunta esquisita?”, falou ela.
“Sim, pois é meio chato perguntar o nome dos outros”, disse.
“Ana”, disse ela, “e o seu?”.
“Xico”, falei.
Conversamos por minutos a fio.
“Vem cá, cê sempre dá voltas assim para falar algo para as pessoas?”, perguntou.
“Nem sempre, só às vezes mesmo”.
“Imaginei mesmo”, disse ela, “mas cê é uma pessoa engraçada quando tenta formular um raciocínio normal”.
“Já me disseram isso antes, mas eu achei uma grande merda”.
Então ela disse que iria para o Morro dos Macacos Molhados dançar forró. Falei que também tinha a intenção de ir para lá, mas antes tinha de passar no hotel para pegar algumas coisas – no caso tomar um destilado para manter o grau etílico em ordem e me certificar de que a situação não iria sair do controle. Thompson estava mal, suando e pálido. Refleti que a quantidade de álcool que ingerimos desafiava a compreensão humana, mas dane-se tudo isso.
Ao pôr os pés no Morro dos Macacos, Maia veio em nossa direção berrando “nossa, vocês vieram, que bom”, nos abraçando. Ficamos alguns minutos com ela, conversando sobre coisas aleatórias. Depois, quando o papo ficou repetitivo, resolvemos ir para a pista de dança e Maia se dirigiu para a mesa onde estavam seus amigos com semblantes tão entediantes quanto o show de Ana Carolina na última noite do Fica.
Fotos: Júlia Lee
De repente, aproximei-me de Ana e sentei-me em sua frente. Ela deu um sorriso, mas seguiu dançando com um cara que tinha feições peçonhentas e indecentes. Dei um gole em minha cerveja, mediando-a dos pés a cabeça. Thompson estava concentrado em uma morena com olhos de farol com quem já vinha tentando conversar desde o dia anterior, quando de apagar no chão com zíper da calça aberto, sem camisa e completamente louco.
Ao findar a música, Ana sentou-se ao meu lado. Trocamos algumas palavras, mas nada que tivesse teor sexual. Eram um amontoado de letras bobas e boa parte delas eram inaudíveis, o que faziam com que tivéssemos apenas contato visual. Menos de cinco minutos depois, ela me tirou para dançar. Disse-lhe que minha habilidade dançarina era como se ver David Bowie com a camisa do Corinthians. Ana sorriu, mas insistiu em tentar fazer o ‘dois pra lá, dois pra cá’ comigo.
“Como se vê, não sou um exímio dançarino”, falei.
Ela sorriu. “É, você é meio duro mesmo, mas nada que uma boa orientação antes não resolva”, disse Ana.
“Então, o que cê acha de tentar fazer isso comigo?”, perguntei.
Ana parou e dançar e segurou a minha mão, olhando em meus olhos. “Tá, deixa eu conduzir a dança, basta você me acompanhar, sem fazer esforço algum nem nada disso”, disse ela. Sorri. “Um, dois… um, dois…”, ensinou Ana.
Ficamos dançando durante três ou quatro músicas.
Ao virar meus olhos para o canto direito, Thompson estava sentado na cadeira, com cabeça baixa e suando sem parar. Aquela cena me deixou preocupado e eu avisei Ana de que precisaria ir ver o que estava acontecendo com meu camarada.
“Cê tá bem, cara?”, perguntei.
“Não, tô passando mal”, respondeu.
“Quer ir lá para fora?”
“Sim, é uma boa”.
“Então bora, parceiro”.
“Essa pizza de alho me fez mal pra caralho”.
“Imagino”.
“Acredite”.
“Não estou duvidando”.
Descemos o morro que dá para a rua, e Thompson parou em uma árvore que encontrou para tentar liberar o fluído gástrico que lhe incomodava e lhe impedia de resolver as coisas com a moça que o acompanhava. Aproveitei para comprar uma água e pensar na beleza natural e cativante de Ana. Porra, eu precisaria fazer algo, tomar alguma atitude… qualquer coisa.
Quanto estava um pouco melhor, Thompson começou a conversar com a moça cujo nome sei lá como era. Enquanto isso, Ana chegou até mim e disse que estava indo embora. Surpreso, respondi que era cedo demais.
“Eu preciso ir mesmo”, disse ela. Então, falei que odiava momento de despedida. “Por quê?”, quis saber. “Ora, porque as pessoas talvez nunca mais se vejam”, respondi. Ela sorriu. Eu fiquei estático. “Você me dá um beijo antes de ir embora?”, pedi. Sem pronunciar uma única palavra, ela veio direção em minha direção e me beijou, sorrindo e virando as costas para a noite iluminada pela lua.
“Beijou?”, perguntou Thompson.
“Sim”.
“Isso aí”, disse, “Xico, homem forte do Diário de Notícias”.
“Nada, só mais um falido miserável que não só se fode na vida”.
Olhei para Thompson, mas não disse nada. Eu estava sorrindo como um retardado. Mas não fazia diferença. Eu era só mais um cara esquisito que buscava um motivo plausível para seguir em frente. Porra, a galera atribui a mim o rótulo de escritor e eu tenho de sustentá-lo de alguma forma. Dou uma estridente gargalhada e seguimos andando na rua com o sol nascendo, matando o ímpeto boêmio e drogado que há em mim e meu camarada. Eu me sinto uma mera caricatura do doutor Hunter Thompson… um homem com certa habilidade literária, mas completamente perdido neste mundo alucinado. O novo sempre vem.