Marcus Vinícius Beck
A reforma agrária do ar
Meios de comunicação estão nas mãos de poucas famílias no Brasil. Legislação não facilita a existência de rádios livres

Concessão de rádio está concentrada nas mãos de políticos no Brasil. Foto: Reprodução
“Atenção, muita atenção! Senhoras e senhores: tomamos essa emissora para transmitir a todo o povo uma mensagem de Carlos Marighella”- Gilberto Luciano Belloque, na primeira frase do Manifesto ao Povo
“Atenção, muita atenção! Senhoras e senhores: tomamos essa emissora para transmitir a todo o povo uma mensagem de Carlos Marighella”. Foi assim que o então estudante da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP) Gilberto Luciano Belloque começou o Manifesto ao Povo. Escrito por Marighella, em 1969, a abertura do texto criticava ações que aconteciam à época e eram erroneamente atribuídas a Ação Libertadora Nacional (ALN). Belloque leu o manifesto na Rádio Nacional, afiliada da Rede Globo, cujo sinal alcançou um raio de 600 km.
A mensagem listava as prioridades da organização que deveriam ser colocadas em prática o mais rápido possível. Dentre os tópicos, Marighella pontuava que era de suma importância derrubar a Ditadura Militar e anular todos os atos institucionais impostos pelo regime ditatorial. Além de expulsar os estadunidenses que viviam no Brasil, expropriar firmas, bens e propriedades deles e de quem os ajudou. Além disso, o revolucionário desejava tomar os latifundiários e melhorar a condição de vida dos operários.
Apesar de permanecer poucos minutos no ar, a experiência gerada pela Rádio Libertadora foi fundamental para que outras iniciativas com objetivo de democratizar a mídia fossem colocadas em prática. Seu legado foi longe, mas até hoje esbarra nos interesses dos poderosos, contrários à pluralidade da informação. Rádios comunitárias, ou livres, são importantes porque concedem a autonomia de produção do material jornalístico para determinada comunidade. A vida de quem mora em localidades isoladas - como áreas rurais - se torna mais fácil com esse tipo de ferramenta.
Décadas depois, em Goiânia, o jornalista Carlos Durruti, 24, trabalhou por quatro anos em rádios comunitárias como integrante do coletivo Magnífica Mundi enquanto cursava Jornalismo na Universidade Federal de Goiás (UFG). Ele acredita que os meios de comunicação com apelo comercial não atendem determinadas demandas das comunidades em geral. Segundo Durruti, a disseminação da informação fica mais rápida quando o próprio público é responsável por produzi-la.
“A democratização da mídia é um passo fundamental para os movimentos sociais e, por conseguinte, para a luta de classes. Sem a democratização da mídia é impossível que consigamos nos comunicar com nós mesmos”- Carlos Durruti, jornalista e ativista
“Quando a rádio está na mão da comunidade eles tomam conta do processo de produção técnica. Escolhem as vinhetas, a programação musical e o conteúdo”, comenta o jornalista, ressaltando que essa autonomia também fomenta a cultura local. “Contribui para fomentar a cultura daquela comunidade e dá autonomia da produção de informação a eles. Relata ainda problemas políticos relacionados à região”, argumenta ele, que participou do loteamento Oziel Alves Ferreira, do Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST).
Durruti ainda contou que uma rádio comunitária teve “extrema importância” para barrar o projeto de construir a hidrelétrica de furnas, na Chapadas dos Veadeiros. “Qualquer meio de comunicação, como uma revista ou um jornal, são extremamente importante para a organização social e para a luta de classes” explica. “A democratização da mídia é um passo fundamental para os movimentos sociais e, por conseguinte, para a luta de classes. Sem a democratização da mídia é impossível que consigamos nos comunicar com nós mesmos”.
Rádio UFG
No dia 28 de outubro de 2016, a Rádio da Universidade Federal de Goiás (UFG) foi ocupada por estudantes da instituição federal e Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO). O objetivo do protesto era dar voz ao movimento que ficara conhecido como Primavera Estudantil e trazer informes sobre as ocupações, além de ter a presença diária de voluntários que iam ajudar na construção dos programas. Na ocasião, os jovens conseguiram ter três horas na grade de programação da emissora.
Em geral, os programas tinham cunho crítico, educativo e eram totalmente irreverentes. Além disso, assuntos que estavam no noticiário à época, como a possibilidade de não haver o Exame Nacional do Ensino (Enem) em função das manifestações, eram discutidos por especialistas e estudantes. A parte estética também tinha um quê pouco usual e músicas como o hino de resistência ao fascismo Bella Ciao faziam parte do setlist utilizados no background (BG).
O argumento usado pelos manifestantes para legitimar a ocupação do meio de comunicação era de que a mídia tradicional não cumpria sua função social. “Foi a primeira vez que vi técnicos e alunos trabalhando juntos, sem brigas, nem nada do tipo, e produzindo bons conteúdos”, relembra um ocupante. Para fechar os programas, era utilizado o recurso de entrada ao vivo de manifestantes de diversas cidades do Brasil.
A experiência na Rádio Libertária durou 11 dias e acabou com documento de Reintegração de Posse expedido pelo juiz Leandro Berquó Neto. A justificativa utilizada pelos donos do poder para tirá-los do ar era de que estavam atrapalhando o fluxo de pessoas na rádio. Além disso, de acordo com o documento, muitos eram desrespeitosos com funcionários, o que foi rebatido pelos estudantes.
Professora diz que coronelismo eletrônico é antigo
Em entrevista ao portal Intervozes, a professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Suzy dos Santos explicou que o chamado “coronelismo eletrônico” é antigo. Ela argumentou que desde o processo de redemocratização, na década de 1980, os governantes que estiveram no poder mostraram-se protagonistas na prática de distribuição de canais de rádio e TV.
“Demonstramos através de documentos históricos, correspondências, reportagens, a instrumentalização das concessões de rádio e televisão desde o período Vargas até os dias atuais. Você verifica claramente que desde os tempos do PSD, os partidos governistas sempre se mantiveram como os partidos dos políticos donos de radiodifusão”, explica.
Para se ter uma ideia, no período entre 1985 - 1988, houve ampla distribuição de outorgas de radiofusão a parlamentares que eram ligados ao então presidente José Sarney (MDB). Durante o governo de emedebista as concessões foram usadas como uma espécie de moeda política, dando origem a um dos processos mais antidemocráticos da constituinte. Em troca de votos favoráveis, foram negociadas 418 novas concessões de rádio e televisão.
Com isso, pelo menos 40% de todas as concessões feitas até o final de 1993 estavam nas mãos de prefeitos, governadores e ex-parlamentares. Nos próximos governos a prática ficou mais sutil, mas não chegou a ser abandonada. O governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) distribuiu 23 outorgas para políticos, enquanto que Luiz Inácio Lula da Silva (PT) concedeu, até agosto de 2006, último ano de seu primeiro mandato, sete canais de TV e 27 outorgas de rádio a fundações ligadas à políticos.
Entre os anos de 2007 e 2010, 687 congressistas eram ligadas a pessoas jurídicas concessionárias de radiofusão. Já no período de 2011 e 2014, 52 deputados federais e 18 senadores eram sócios ou associados de concessionária. Os governos petistas, especialmente o de Lula, não quiseram tratar da democratização dos meios de comunicação. Aliás, o ex-sindicalista injetou grandes fortunas nos meios de comunicação que integram a grande mídia com o objetivo de conseguir governar. Deu certo em um primeiro momento, mas logo depois mostrou-se uma escolha equivocada.