Marcus Vinícius Beck
O Porão do Rock resiste ao tempo e vira vintage
Festival
Metamorfose mostrará ao longo da semana entrevistas exclusivas com artistas que tocaram no evento. Caro leitor, confira como foi o Porão no geral
Bbbbbbbbbrrrrrrrrrroooommmmmmmmm…….. Entrei em um Toyota Corolla branco por volta do meio-dia do último sábado (29) e cumprimentei com aperto de mão a condutora enquanto me sentava no banco de trás do automóvel ao lado da fotógrafa Júlia Lee, 22. O ar estava pesado e quente, era entrar numa sauna a vapor em pleno período de seca no Cerrado goiano. De ressaca, com o fluxo de pensamento confuso, desejando beber uma cerveja para atenuar os excessos da noite anterior e suando sem parar, falei à minha colega algo do tipo “você conhece a pessoa que vai nos levar a Brasília?”
Júlia balançou a cabeça, dizendo que não fazia a mínima ideia de quem era a motorista. “Não a conheço, não. Você por um acaso cogitou a ideia de que ela fosse minha amiga? Só entrei no site de viagem BlaBlaCar e arranjei a carona pra Brasília”, disse ela, pegando um exemplar do Diário de Notícias e passando rapidamente os olhos numa matéria sobre literatura de minha autoria. “Adorei. Amo o poeta Lawrence Ferlinghetti”, comentou, mudando de assunto repentinamente.
Bem, para você compreender este rabisco é preciso dizer que iríamos cobrir a 20° Edição do Festival Porão do Rock. Criado em 1998, em Brasília, o evento contaria com a apresentação da banda carioca Barão Vermelho (cuja incógnita era saber se os caras manteriam o espírito rollingstoniano após a saída do compositor, cantor e guitarrista Roberto Frejat), do punk da brasiliense Plebe Rude (autores da música Até Quando Esperar) e a carioca Letrux (em turnê pelo Brasil para mostrar o disco Em noite de climão, lançado no ano passado), além de revelações do naipe da galera do Tarot, natural de Brasília, e Francisco, El Hombre, de São Paulo, que é a sensação do momento.
Confesso que estava animado para isso tudo. Editor de cultura de um jornal que tem fama de não pagar, eu pretendia fazer um trabalho jornalístico que entrasse para o rol das matérias mais fodas da imprensa goiana. Acontece que normalmente fico meio apreensivo antes de um trabalho desse tipo, mas dou um jeito de manter a postura e não provocar nenhuma ação que gere sentimentos sórdidos às pessoas ao meu redor. O desafio que pairava sob minha cabeça era saber como manter a tranquilidade.
Transição de imagem... Júlia e eu passamos a viajem toda (cerca de 200 quilômetros) conversando sobre vários assuntos – desde a conjuntura política e social pela qual o Brasil passa até a qualidade sonora de bandas como Barão Vermelho e Plebe Rude. Enquanto isso, prestávamos atenção no diálogo que rolava entre a condutora do veículo e a passageira que estava no banco do carona – havia um outro cara que caiu no sono quando saímos de Goiânia, mas tive a impressão de que ele não teria nada de relevante para falar.
Merda. O que me intrigava profundamente era como Júlia arrumou a carona até Brasília. Não fazia o menor sentido em minha cabeça você apertar três botões e, de repente, aparecer o condutor que irá levá-lo a outra cidade. Os mais antenados na evolução tecnológica provavelmente diriam que o mundo funciona assim hoje em dia. Pois digo que não estou nem aí. Sou como uma caricatura sem talento de Ernest Hemingway: um cara zoado o bastante para aderir totalmente a esses tempos em que a quantidade de ‘likes’ determina como você será como ser humano.
Deixa dessa divagação toda, seu jornalista bêbado esquisitamente estranho… Ok, chegamos em Brasília às 15h15. O tal dispositivo BlaBlaCar nos deixou em um posto de gasolina na entrada para Águas Claras, região administrativa do Distrito Federal, e consideravelmente longe do Plano Piloto, onde iríamos trabalhar. Ansioso, comprei uma cerveja por R$ 6,00 e esperei o Uber chegar para nos levar até o Residencial Park das Árvores, nossa estadia na Capital Federal. Observei alguns homens assediando a frentista, tecendo comentários horripilantes sobre coisas que nem vale a pena reproduzir.
Fiquei puto, mas me lembrei disto: não fazíamos a mínima ideia do que nos esperava, mas sentíamos que algo iria acontecer nos próximos dias.
1° dia
Fotos: Júlia Lee
O calor sufocante de Brasília dá sensação de estar dentro de um fogão a 200 graus. Parece que fatias quente de queijo derretido estão segurando seus passos tal como uma areia movediça em uma praia durante um dia de verão. Uma breve conversa com o cara careca do Uber me informou que a Capital do Brasil é indesejável para quem vem de fora e não tem carro para se locomover pra lá e pra cá.
Ao notar que eu estava bebericando uma cerveja, o sujeito falou algo como “você está só de boa aí”. Respondi que era minha forma de me preparar para trabalhar, o que lhe causou espanto. Surpreso com meu modus operandi, perguntou qual era a minha profissão. “Jornalista”, respondi, emendando que “eu estava em Brasília para cobrir o Porão do Rock”.
Então, com as mãos no volante e olhando para a pista, o motorista disse que a capital brasiliense já não é mais aquela cidade movida por riffs de guitarra, berço do movimento punk no final da década de 1970. “Isso tudo ficou no passado. Já foi a época em que Renato Russo e o pessoal do Capital Inicial tocava aqui. Hoje, a sofrência de Goiânia chegou às rádios daqui e esses shows já estão na preferência das produtoras de eventos”, concluiu.
Chegamos ao destino. A incógnita era conseguir adentrar na residência de Lorena Lima, baixista do grupo de rock Humbold e uma amiga de Júlia que se dispôs a nos dar abrigo nos próximos dois dias. Simpática, ela logo foi dizendo que “era para nós ficarmos à vontade”. Larguei meus utensílios sob a cama e passei a mão pelo rosto: eu estava me desfazendo em suor. Vestindo preto, sentia que me desfaleceria pelo chão daquela residência dentro de instantes.
Todavia, travava uma batalha comigo mesmo para me manter em pé, pois não seria nada divertido passar mal na casa de uma desconhecida. Caralho, que calor é esse, Jesus Santíssimo? Será que estou pagando todos os meus pecados aqui nesta terra?
Vai saber, né... Após duas horas de turbulência, que nos levou a andar de metrô e a pé em meio ao sol escaldante do Planalto Central, conseguimos nos credenciar e pisar dentro do Estádio Mané Garrincha - palco da 20° Edição Porão do Rock - para cobrir o evento. Construído em 1974, o estádio foi reformado para a Copa do Mundo de 2014 e recebeu alguns jogos da competição, porém virara um elefante branco assim que acabara o mundial. Atualmente, para você ter uma ideia, times do Rio de Janeiro que disputam a Série A, como Flamengo, Fluminense, Vasco e Botafogo, optam por jogar nele.
Porra, precisávamos procurar algum lugar para encher a barriga. Alguns caras que estavam à frente do hotel disseram que havia um shopping “com mil opções para comer”. O problema foi que pagamos perversamente caro para matar a fome. Dois pratos de comida italiana saíram R$ 53.

Satisfeito e de barriga cheia, observei que lua estava despontando para iluminar a noite. Depois de ser revistado pelos seguranças, percebi que poucas pessoas prestigiavam o show das primeiras bandas, que eram os brasilienses do Ursa, Clausem Vitrola Soud e Matamoros, responsáveis por abrir a Porão do Rock. Desde o início, reparei, todas as apresentações reverenciaram o protesto #EleNão, que aconteceu em várias cidades do Brasil no sábado. Nas intervenções dos artistas contra o candidato de extrema-direita à presidência, Jair Bolsonaro (PSL), o público batia palmas e entoava cânticos como “ele, não” e “ele nunca”.
Musicalmente, o destaque da noite foi para a Orquestra Sinfônica Brasileira de Música Jamaicana que fez uma interessante releitura de clássicos da música brasileira. Acompanhado de metais, a banda surpreendeu o público presente ao tocar com maestria canções como País Tropical, lançada pelo cantor e compositor Jorge Ben Jor, em 1969, e Trem das Onze, do sambista paulistano Adoniran Barbosa, gravada no mesmo ano. Outra apresentação que chamou atenção foi a da banda brasiliense Tarot. Misturando elementos de música cigana com rock, eles mostraram maturidade harmônica como se já estivessem há anos na estrada.
Por outro lado, o grupo paulistano noventista de rap Pavilhão 9 pareceu uma versão pífia da mítica banda de rap rock Planet Hemp, autor do clássico disco Usuário, de 1995, cujas letras faziam referência explícita à descriminalização da maconha. Pela mesma toada foi a rapaziada da banda carioca Braza. Em turnê desde o ano passado para divulgar o último trabalho, o grupo não conseguiu fazer o público sair do chão. O que mais se viu quando eles estiveram no palco foi um êxodo de gente em direção ao bar e às tendas de alimentação.
A última apresentação do primeiro dia ficou sob responsabilidade do dueto entre os pernambucanos do Nação Zumbi e o carioca BNegão, fundador do Planet Hemp e ativista político que vê a música como um meio de resistência. Criadores do movimento mangue beat, que tem o texto Caranguejos com Cérebro, publicado em 1992, como uma espécie de manifesto, os pernambucanos tocaram sucessos antigos e levaram o público a cantar as letras clássicas, como Banditismo por uma questão de classe, junto com o vocalista Jorge du Peixe.
Mas se você estava bêbado (coisa que particularmente achei difícil, pois a cerveja custava R$ 8 a lata de 350 ml e era comercializada em temperatura inadequada, leia-se, quente) e procurou um lugar para comer, foi surpreendido. Assim como o custo da birita, o famigerado sanduba nas dependências do Estádio Mané Garrincha soava como uma facada nos bolsos. A galera mais quebrada optou por controlar os efeitos da ressaca nas tendas ao lado de fora, o que vem sendo uma prática comum nos festivais do circuito underground.
2° dia
É importante salientar que o line-up da 20° Edição do Porão do Rock foi diverso. Havia um palco destinado para a galera que curte metal, mas a vibe dos aficionados por rock pesado era terrivelmente estranha. O público ficava pulando sem parar, com cara de furiosos, carecas, bombados, um horror!
Em contrapartida, creio que os organizadores não chegaram a fazer um evento em que levassem em consideração a realidade da classe trabalhadora, ou que buscasse de fato incluí-los. Ainda que o ingresso custasse R$ 25, barato para um festival que contou com bandas de renome nacional, muitos proletários tiveram de abandonar as dependências do Mané Garrincha antes de soar o último acorde das guitarras, já que no primeiro dia o Porão findou por volta das 4h da madrugada e no último por volta das 2h. Fico imaginando em que condições essa galera foi trampar nas repartições na segunda-feira.
O que não consegui compreender também foi a razão pela qual as grandes atrações ficaram para o último dia. Creio que se os medalhões do Barão Vermelho e Plebe Rude tivesse tocados no sábado o público compareceria em maior número. O raciocínio aplicado para justificar esta minha teoria é bem simples: sábado geralmente é dia em que as pessoas desejam sair de casa para beber, gritar na rua e curtir a vida. Domingo, como diz a velha música homônima, lançada em 1996, pela banda de rock paulistana Titãs, é dia de vê-lo passar. E curar a ressaca.
Fotos: Júlia Lee
Bem, a política e discurso militante não poderia ter ficado de fora. Um dia após o ato #EleNão, convocado por mulheres em todas as capitais do Brasil e em outras cidades do mundo, os músicos aproveitaram para fazer referência negativa ao presidenciável de extrema-direita, que apareceu em queda livre nas últimas pesquisas. O ápice dessas manifestações se deu quando a cantora Letrux criticou Bolsonaro entre uma música e outra, levando a platéia quase ao êxtase.
Agora, canções que tiveram apelo político no passado, como o clássico da banda carioca Barão Vermelho Pro Dia Nascer Feliz (Cazuza a cantou enrolado na bandeira do Brasil no Rio in Rio, em 21 de janeiro de 1985, dia em que Tancredo Neves foi eleito presidente) e Brasil, levantaram o público ao delírio.
Aliás, em Brasil, canção gravada por Cazuza no álbum Ideologia, de 1988, o vocalista do Barão Vermelho Rodrigo Suricato lembrou que a letra composta há trinta anos ainda segue atualíssima. “Talvez a única coisa que tenha mudado é a frase: ‘ver TV a cores na tábua de um índio. Hoje, provavelmente seria “ver Netflix na tábua de um índio”, protestou o cantor e guitarrista.
O Barão (como é grupo é carinhosamente chamado pelos fãs) mostrou que ainda tem preocupação social e política, e bom e velho rock and roll correndo nas veias. Após a saída de Frejat, o grupo renasceu com uma nova cara: Rodrigo Suricato. Homem de frente da banda pop Suricato, o músico se mostrou um substituto à altura do eterno parceiro de Cazuza, mesmo que o próprio substituto dispense essa comparação. “O Frejat é um querido”, disse o atual vocalista do Barão, em entrevista após o show.
O que mais impressionou é a resistência do Barão. Formado em 1981, e apesar de tempestade gerado pela morte do percussionista Peninha e saída do baixista Rodrigo Santos no ano passado, quando Maurício Barros, Fernando Magalhães, Guto Goffi, Márcio Alencar e Rodrigo Suricato sobem no palco vemos que eles gostam de fazer rock - e assim vem sendo ao longo das últimas três décadas.
Com uma sequência de tirar o fôlego, eles mandaram logo de cara Pense e Dance, do álbum Carnaval, de 1988, e Ponto Fraco, do disco Barão Vermelho, de 1981. A partir daí, o rock and roll rolou e foi direito. O som do Barão é visceral, forte e simples. Com o volume no máximo, tive a chance de ouvi-los. E, como todo respeito, digo-lhes: é do caralho!