Marcus Vinícius Beck
García Lorca, um eterno
Literatura
Escritor flertou ao longo da vida com as mais diversas artes. Foi assassinado pelas tropas do ditador Francisco Franco, em 1936

Homossexual convicto numa Espanha pré-franquismo (1939-1975), ditadura fascista responsável por dizimar anarquistas, comunistas e socialistas, o poeta Federico García Lorca nasceu no dia 5 de julho de 1989, em Fuente Vaqueros, província de Granada. Filho de professora, aprendeu a ler e escrever cedo. Seu primeiro livro de poemas, Impresiones y paisajes (1918), foi lançado quando ele tinha 19 anos. Prodígio em praticamente tudo que fez ao longo de sua curta vida, enveredou para o campo das palestras e tornou-se um conferencista aclamado.
Em 1918, o escritor mudou-se para Madri para cursar Direito. Sem vocação, fez Letras e Filosofia. Viveu por dez anos na residência de Estudantes de Madrid, onde chegou a dividir o quarto com o amigo e futuro diretor Luis Buñuel (1900-1983), idealizador do curta-metragem Cão Andaluz (1930). Machista, o cineasta que tecia comentários depreciativos acerca do poeta. Também foi vizinho do pintor surrealista Salvador Dalí (1904-1989), mas o artista era conservador e o relacionamento de ambos teve vários altos e baixos. Do convívio, nasceu desenhos de Dalí dedicados a Lorca e o cenário da peça Mariana Pineda (1925).
Em entrevista à Revista Cult, a cientista social Syntia Pereira Alves disse que Lorca admirava bastante Dalí, porém o poeta “influenciou mais o pintor do que o contrário”. “Já era famoso (Lorca) quando os dois se conheceram, na República dos Estudantes. É o Lorca quem abre caminho para Dalí, apresentando-o às rodas de artistas da Espanha”, explica a estudiosa, autora da tese Teatro de Garcia Lorca: a arte que se levanta da vida. Convencido por Buñuel a ir trabalhar em Paris, onde estaria reunida a Geração Perdida, Dalí passa a rejeitar o poeta, que se mudara para Nova Iorque com o objetivo de estudar na Universidade de Columbia.
Na terra do Tio-Sam, Lorca publicou o livro O poeta em Nueva York (1929), considerada uma de suas melhores obras. Seis anos depois, quando regressou a Espanha, o poeta foi brutalmente assassinado pelas forças franquistas. Na ocasião, chegou a ser retirado à força da casa de amigos, em uma grande operação do Governo Civil que cercou todo o quarteirão, tendo-o fuzilado por tropas fascistas junto com mais três anarquistas. A Espanha vivia o início da Guerra Cívil Espanhola (1936-1939), episódio europeu mais dramático antes da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), responsável por milhares de mortes.
Após as tropas de Franco destruírem a Espanha e o “generalíssimo” chegar ao poder, as maiores inteligências do País foram embora. Toda a vanguarda artística partiu para o exílio no México, sobre a proteção do então presidente Lázaro Cárdenas (1895-1970). O ditador chegou a proibir línguas regionais, como o catalão e o basco, acentuando ainda mais o sentimento separatista nessas províncias. Franco permaneceu no governo até 1975, ano em que morreu, e quando o rei Juan Carlos (escolhido pelo próprio ditador ), assumiu o trono. A obra de Garcia Lorca ficara censurada na Espanha de Franco durante 20 anos.
Trevas
O ano de 1936 é o mais engajado politicamente do escritor. No primeiro semestre, Garcia Lorca explicitou suas ideias sobre teatro, poesia e cultura espanhola, além de deixar bem claro seu apoio à República e seu repúdio ao franquismo. Pouco antes das eleições, Lorca participou de atos favoráveis à Frente Popular (contrária ao regime ditatorial que se vislumbrava), e, em março, assinou um telegrama enviado ao ex-presidente Getúlio Vargas (1882-1954) em que pedia a liberdade do militante pelo Partido Comunista Brasileiro, Luís Carlos Prestes (1898-1990). Após morrer, Lorca se transformou em símbolo de resistência contra o autoritarismo.
“Houve consternação em todo o mundo de língua espanhola, e a imprensa europeia também noticiou o assunto. Quase da noite para o dia Lorca tornou-se um mártir republicano”, escreve o escritor irlandês Ian Gibson na biografia do poeta. Décadas depois, especialmente durante o movimento de contestação de valores da sociedade burguesa, o poeta passou a ter seus escritos ligados aos movimentos de liberdade sexual em função da justificativa que se deu à sua morte: a homossexualidade. Com a década de 1970, o escritor passa a ser associado também a questões políticas e sociais na América Latina, sobretudo nos países que passaram por ditaduras militares.
Segundo Gibson, o documento da morte do poeta foi feito no Registro Civil quase um ano após o fuzilamento. O atestado declarava que Lorca morreu ‘no mês de agosto de 1936 em consequência de ferimentos de guerra’. Para o mundo, dava a impressão de que o poeta tinha sido vítima de uma bala perdida”, afirma o biógrafo. A visão que se teve teve foi que o poeta tinha sido vítima de bala perdida. “Não foi à toa que Lorca foi assassinado junto de dois homens que eram anarquistas”, defende Syntia.
Em 1968, ano em que fora imposto pela Ditadura Militar no Brasil o Ato Institucional Número 5 (AI-5), vincular poemas de Lorca ou até mesmo montar suas peças de teatro nos grandes centros representava desafiar, ainda que indiretamente, a Ditadura Militar. “Lorca se transforma em uma bandeira de luta. Existem relatos de pessoas declamando seus poemas em lugares públicos. Declamavam: ‘Verde que te quero verde’, e outros poemas aparentemente não políticos, interpretados como libelos contra a opressão pela forma como Lorca foi assassinado, como um mártir na luta pela República”, conta o ator e diretor de teatro Rodrigo Mercadante, em entrevista à Revista Cult.
Poemas

Durante a Ditadura Militar, publicar os poemas ou encerar as peças de Lorca era uma afronta ao regime. Foto: Reprodução/Revista Cult
Volta de passeio
Assassinado pelo céu,
entre as formas que vão até a serpente
e as formas que buscam o cristal,
deixarei crescer meus cabelos.
Com a árvore de cotos que não canta
e o menino com o branco rosto de ovo.
Com os animaizinhos de cabeça rota
e a água esfarrapada dos pés secos.
Com tudo o que tem cansaço surdo-mudo
e borboleta afogada no tinteiro.
Tropeçando com meu rosto diferente de cada dia.
Assassinado pelo céu!
Gazel do amor desesperado
A noite não quer vir
para que tu não venhas,
nem eu possa ir.
Mas eu irei,
inda que um sol de lacraias me coma a fronte.
Mas tu virás
com a língua queimada pela chuva de sal.
O dia não quer vir
para que tu não venhas,
nem eu possa ir.
Mas eu irei
entregando aos sapos meu mordido cravo.
Mas tu virás
pelas turvas cloacas da escuridão.
Nem a noite nem o dia querem vir
para que por ti morra
e tu morras por mim.