Marcus Vinícius Beck
O Filho de José e Maria
Música
Aclamado na década de 1970, o cantor goiano Odair José lançou um dos discos mais icônicos do Brasil

O cantor Odair José foi excomungado pela igreja católica ao lançar O Filho de José e Maria. Foto: Reprodução
Odair José, 70, está em forma. É dessa forma que o cantor e compositor goiano deseja ser visto pelo público em suas apresentações País a fora. Natural de Morrinhos, cidade que fica a 127 quilômetros de Goiânia, o músico sessentista foi pioneiro em cantar para os corações suburbanos e reinou nas paradas de sucesso, na década de 1970, com clássicos como Deixe essa vergonha de lado, A noite mais linda do mundo e O Casamento. Mas no auge da carreira e em plena Ditadura Civil-Militar (1964-1985), o cantor resolveu fazer uma ópera-rock sobre um Jesus contemporâneo ao século XX.
Intitulado como O Filho de José e Maria (1977), a obra mais experimental da carreira de Odair José abordava a história bíblica de Jesus Cristo com episódios de descoberta sexual. Como resultado da afronta ao poder religioso, o disco foi considerado impróprio pela igreja católica e ele acabou sendo excomungado, fazendo com que aquilo que era para ser um marco na música brasileira virasse uma pedra no sapato do artista. “Quando o disco saiu, ninguém queria tocar. Uns achavam uma blasfêmia. Havia uma campanha entre os produtores de show para não me contratarem. De repente, eu era o inimigo número 1”, contou Odair, ao portal de notícias UOL, em abril deste ano.
“Eu acredito e acho que a história de Jesus Cristo muito bonita, mas não vejo a história de Deus como a Igreja conta. Ainda não sabemos se existe nem que forma tem. Acho que a Igreja usa muito a fé e necessidade das pessoas para explorar isso aí”, disse o músico, na entrevista. A coisa degringolou de vez quando um bispo de Campo Grande excomungou o cantor. “Eu estava usando drogas e bebidas, e a coisa estava ficando tensa. Fiquei mais doidão ainda. Peguei e cancelei todos os shows”, revelou o compositor goiano, que também ganhara a alcunha de “O terror das empregadas” e “Bob Dylan da Central do Brasil” por conta das músicas com cunho social e reivindicatórias que compunha.
Pensa comigo... O cara chegou a dizer que o personagem do disco afirma que José e Maria, os pais do menino Jesus, fizeram a criança antes do casamento e tiveram que se unir em matrimônio rapidamente, pois havia sério risco de o casal ficar mal falado. Parece mais um cenário da dramaturgia de Nelson Rodrigues (1912-1980), não? Calma. Na Bíblia, Maria engravida do Espírito Santo e não era casada com o carpinteiro. O que o cantor fez nada mais foi do que transportar a história do casal para os tempos modernos, passando por tabus como homossexualidade, uso de drogas e morte.
O Filho de José e Maria é um clássico da música popular brasileira que ficara anos engavetado, mas que em momentos onde os neoconservadores estão espalhando-se pela sociedade é interessante ouvir essa obra-prima. Para você ter uma ideia, o próprio Odair José voltou a tocá-lo na década de 2010, quando lançou O Filho de José e Maria ao vivo (2014). Os caducos críticos da década de 1970 estavam de fato todos errado ao tecer críticas ao álbum. Ora, é claro que estavam, sim... Porra, o disco é simplesmente sensacional. Merece, em meu humilde entendimento, toda honra e glória. Hoje e sempre.
Namoro com a música
Nascido em 16 de agosto de 1948, na pequena cidade de Morrinhos, no interior do Estado, Odair José decidiu que queria viver de música cedo. Tímido, começou suas primeiras apresentações como “crooner”, porém sempre acreditando em suas composições embarcou para o Rio de Janeiro, em 1968, para tentar correr atrás do sonho. Sem grana, chegou a dormir em praça pública e escorado nas pilastras do Teatro Municipal e no banheiro do aeroporto Santos Dumont. Nesta época, Odair travou o primeiro contato com o “submundo”, tornando-se um atento observador de pessoas. Ou como o próprio artista curte se definir: um cronista musical.
Com dois anos lutando para ser conhecido, foi apresentado ao cantor, compositor e produtor musical Rossini Pinto, ligado à Jovem Guarda, que lhe estendeu a mão e apresentou as músicas de Odair para as gravadoras. Seu primeiro compacto foi lançado pela CBS, com a música As coisas, chegando a marca de 100 mil cópias vendidas em 1972, colocando-o como o artista mais requisitado para ir a programas de rádio e televisão. Em julho do mesmo ano, assinou contrato com a gravadora Polydor e gravou o LP Eu sou assim, que figurou em primeiro lugar em todo Brasil com as músicas Eu queria ser John Lennon, Esta noite você vai ter que ser minha.
O cantor também trouxe para a música brasileira temas que ainda eram considerados tabus na sociedade, como em Eu vou tirar você desse lugar, música que conta a história de um cara que se apaixona por uma garota de programa, e Pare de tomar a pílula, que fala abertamente sobre prevenção nos anos de chumbo dos militares. Sexo, por sinal, sempre foi um assunto marcante na obra dele. “Não vou dizer que sexo é tudo, mas é importante, e eu gosto à beça... Quando o pessoal da Jovem Guarda cantava o Amor de portão, eu já falava de cama. O amor tem muito a ver com desejo”, disparou ele, em entrevista publicada no jornal O Globo, no dia 20 de janeiro de 1996.
Em 1973, quando o general Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) era o presidente do Brasil, Odair compôs a música Deixe essa vergonha de lado com o objetivo de valorizar a profissão de doméstica, o que deu-lhe a alcunha de “Terror das empregadas”. Em entrevista à jornalista musical Ana Maria Bahiana, no momento em que lançara a ópera-rock O filho de José e Maria, o cantor disse que sempre gostou de rock. “É, é rock mesmo o que eu quero fazer agora... Eu gosto de rock, sempre gostei. No começo da minha carreira eu curtia Beatles, Stones, essas coisas”, afirmou, na ocasião.