Marcus Vinícius Beck
A antítese do conservadorismo
Música
Cantor prepara-se para lançar autobiografia narrada em primeira pessoa onde detalha relação conturbada com o pai

Capa da autobiografia Vira-lata de Raça. Foto: Divulgação
Desafiadora. É dessa forma que a carreira do cantor e compositor Ney Matogrosso pode ser definida. Foi no anos de chumbo, período mais repressivo da Ditadura Civil-Militar (1964-1985), que ele despontou para o Brasil como um dos integrantes da banda de glam rock Secos e Molhados. Com voz marcante e suave, o ex-parceiro de Cazuza (1958-1990) fez do corpo e sexualidade suas armas para combater o conservadorismo que estava impregnado na sociedade daquele período, fazendo com que os milicos o vissem como uma afronta à tradicional família brasileira.
Alguns anos depois, Ney Matogrosso prepara-se para lançar a autobiografia Vira-lata de Raça e diz que o Brasil é mais careta do que aquele de décadas atrás, o que não chega a ser necessariamente uma novidade, cá entre nós... “A gente regrediu muito e isso tem que admitir. A gente não pode querer tapar o sol com a peneira. Houve uma regressão muito grande, que não é de agora. Agora pode ser que dê um outro salto, mas a gente já deu um grande salto pra trás com a chegada de Temer”, afirma o cantor, em entrevista ao portal de notícias G1.
Na obra, Ney detalha a relação conturbada que teve com o pai e tece pareceres sobre o fim do grupo Secos e Molhados, momento crucial que o revelou ao Brasil. Também conta como era a relação com o poeta e fundador do Barão Vermelho, Cazuza. Poucos sabem, mas o compositor de Sangue Latino foi um dos responsáveis por impulsionar a carreira da banda de rock carioca oitentista ao regravar uma versão de Pro dia nascer feliz. Se você acha esse enredo já basta para um bom livro, alto lá: Ney narra ainda o momento em que dera um beijo em “seu primeiro amor” quando servia a aeronáutica dentro da própria aeronáutica.
Afrontoso o cara, não? Pois é, ainda que não levante publicamente nenhuma bandeira partidária, aliás o cantor foi um crítico ferrenho dos governos petistas, Ney Matogrosso é de fato um verdadeiro manifesto político. Afirma que toda sua vida enquanto artística é guiada pela defesa da liberdade de expressão e dos direitos individuais. Ney começou a se destacar aos 31 anos, em 1973, no fervor da repressão provocada pelo Ato Institucional Número 5 (AI-5), período mais sádico do militarismo.
Narrado em primeiro pessoa, Ney compara o atual contexto pelo qual o país passa com aquele vivido durante a ditadura, e é taxativo ao garantir que não somente o Brasil, mas o mundo, passa atualmente por um contexto pior do que em outrora. “O planeta está nas mãos de pessoas da pior qualidade possível, inescrupulosas, sem caráter, loucas de verdade. Apesar de enxergar essa podridão, não permito que meu olhar se reduza às excrescências do que estou vendo. Sem dúvida essas pessoas que estão agora no poder irão parar na lata de lixo”, escreve ele, em Vira-lata de Raça.
Liberdade

Banda Secos e Molhados na década de 1970. Foto: Reprodução
Ney Matogrosso ficou chateado quando o fundador do Movimento Brasil Livre (MBL), Kim Kataguiri, usou em setembro do ano passado sua imagem com o objetivo de ligar o icônico integrante dos Secos e Molhados com a direita neoconservadora. O jovem postou nas redes sociais uma foto ao lado de Ney com a seguinte legenda: “Depois da manifestação de ontem, encontrei um grande ídolo e defensor do impeachment: Ney Matogrosso”.
No Facebook, o empresário do artista publicou a reação do cantor ao saber que tratava-se de Kim. “Esse garoto chegou perto de mim numa lanchonete em São Paulo e pediu para tirar uma foto comigo. Eu disse sim. Foram as únicas palavras trocadas entre nós, não sei quem é nem me perguntou o que eu achava sobre o assunto. É um imbecil”, disparou o cantor, que nunca posicionou-se nem de um lado nem do outro no espectro político polarizado dos últimos anos.
Em entrevista ao jornal O Globo concedida em julho do ano passado, meses antes do inconveniente episódio ocorrido com o líder do MBL, Ney Matogrosso frisou que não se sente representado politicamente por ninguém. Para ele, a política partidária é passível de gerar desconfiança no público em relação a várias coisas. “Eu tenho um olhar distanciado, o problema das pessoas é que elas deixam se envolver”, disse ao diário carioca. “Tenho uma postura crítica, mas não vou me envolver com aquilo em que não acredito”.
Momentos marcantes
Em 1975, após o término da banda Secos e Molhados, o cantor gravou o clipe de “América do Sul” para o programa semanal Fantástico da TV Globo. Para a época, o vídeo foi considerado uma superprodução. Na década de 1980, Ney gravou a música Dia dos Namoradas com o poeta Cazuza, com quem teve um romance na década de 1970. Também fez um show com o grupo pernambucano Nação Zumbi em setembro de 2017. Apesar da voz grave linear de Jorge Du Peixe e do agudo de Ney, o momento foi histórico.