Marcus Vinícius Beck
Bolsoñuel
Botequim Literário do Beck

Cena do filme Discreto Charme da Burguesia. Foto: Reprodução
Amigo leitor (a), eis que os primeiros onze dias do governo ultradireitista foram uma sessão surreal que nem o mais bêbado dos brasileiros (atesto isso com experiência empírica, você sabe) chegou a sacramentar que seria possível tanta asneira em pouquíssimo tempo. A coisa tá tipo um enredo assinado pelo diretor espanhol Luis Buñuel - sim, me refiro ao cara que filmara o clássico da sétima arte, O Discreto Charme da Burguesia, em 1972.
Na cena protagonizada pelo ministro Ernesto Araújo, das Relações Exteriores, o espectador foi provocado a escolher, ainda que com chance pífia de alternar o desencadeamento da narrativa: The New York Times ou Folha de São Paulo? Eduardo Costa ou Raul Seixas? Deus punitivista e chantagista ou o Diabo na Terra do Sol? Marxismo cultural ou esquerdismo vermelho totalitário comunista socialista? Olavo de Carvalho ou Glauber Rocha? Lobão ou Caetano?
Nobre cidadão de bem nesta terra de Guimarães Rosa e Graciliano Ramos, bota o controle remoto ao lado porque o seriado tá apenas no começo. Outras cenas pra lá de tresloucadas vão acontecer em breve, afinal de contas a família Bolsoñuel faz questão de expor seus pensamentos paranóicos e suas vidas em 150 caracteres na rede social mais bafafá do momento. E o Big Brother político brasileiro segue sem confessionário.
Ah, já ia me esquecendo, veja só: a ministra Damares Alves, da Família, bateu no peito e disse outro dia: menino veste azul e menina veste rosa. E dá-lhe play na fita, quer dizer no Netflix em que se transformou a coisa pública brasileira nos últimos anos. Mas, olhe você, há quem desconfie que o discurso moralista e reacionário da pastora seja uma reles cortina de fumaça para encobrir as bombas pré-anunciadas à economia, à educação, à agricultura, ao meio ambiente, às minorias e aos proletas. Não duvido, pois a decretaiada já saiu no Diário Oficial.
Enquanto a taberna da esquina e as redes sociais pegam fogo com discussões sobre os modos da macharada neste Brasilzão surreal, a caneta Compactor do Senhor Messias (sempre ele, o salvador da pátria, o mito, o chefe da família) assina medidas que protegem os seus e joga ao léu aqueles que mais precisam. Viva o arrocho aos desprotegidos, ao salário mínimo abaixo da inflação, sempre os feios, os sujos e os malvados estão na berlinda e que vão pagar a conta.
Aliás, quanto vale ou é por quilo, sopra-me aquele conto do velho Machadão de Assis? Explico, meu amigo Charlie Brown: em um país tropical já esquecido por Deus - recordista em violência contra a comunidade LGBT e casos de feminicídios provocados pelos homens que vestem desde a infância o tal do azul da ministra Damares - e com a beleza às vias de ser leiloada para a galera do agronegócio - vide a Chapada dos Veadeiros aqui em Goiás -, temo que nem um sujeito do calibre do Machadão ia saber responder esse questionamento.
Assim como na sátira de Buñuel, O Discreto Charme da Burguesia, vivemos a ilusão de que os donos do controle remoto vão frear esse circo de horrores. Mas logo percebo que um post bafão ou um meme repleto de sarcasmo e acidez não serão capaz de deter a extrema-direita reaça, evangélica, antiquada e tosca nesta terra maluca chamada Brasil, onde anti-intelectuais, incultos e ignorantes estão no poder e as cabeças pensantes sendo ridicularizadas pela boataria do zapp.
Por isso, antes de mais nada, evoco a revolta do Senhor Kurtz, personagem do romance Coração das Trevas, lançado 1899, pelo escritor suíço Joseph Conrad, crítico do imperialismo europeu no século XIX: “o horror, o horror”.
Pois é, este é nosso Brasil de hoje. E como mudá-lo, amigo leitor (a)?