- Júlia Lee
Resistência cultural: circo
Entrevista
Entrevista exclusiva do Jornal Metamorfose com a trapezista Marcela Faria que irá se apresentar na festa Exumação, que acontece hoje (8)

Arte: Ilâne Nunes
A arte circense tem pelo menos 5.000 anos, de acordo com estudos que encontraram pinturas chinesas que mostram contorcionistas, malabaristas e equilibristas. Já em Roma, o circo tem um marco histórico em 70 a.C com a criação do Circo Máximo, que foi instalado no lugar onde hoje é o Coliseu. No Brasil a arte veio junto com os ciganos no século XIX, que faziam festas e apresentações pelo país.
2 de fevereiro de 2019. O governo ultradireitista de Jair Bolsonaro assassina o Ministério da Cultura, com seu fim o circo perde grande possibilidades de incentivo – através de leis e editais - que vinham fomentando a continuação e profissionalização de artistas circenses. Em protesto ao fechamento do MinC, o coletivo Metamorfose, irá realizar uma festa de EXUMAÇÃO, para ressuscitar a cultura em Goiânia, e uma das atrações principais é a trapezista Marcela Faria, que deu uma entrevista exclusiva para o Jornal.
Confira na íntegra a entrevista:
Jornal Metamorfose: A festa EXUMAÇÃO tem o propósito e tal de questionar o que é resistência cultural. Como o ministério foi extinto, a gente quis fazer uma festa em que o protagonista fosse as artes que mais precisam resistir. Como você vê isso?
Marcela F: Eu acho que as políticas públicas de arte quando elas acontecem nos ministérios e afins, toda numa esfera tradicional burocrática ela viabiliza muitos projetos a acontecerem por capacitar recursos, espaço, fomentar divulgação, por abrir espaço de discussão e isso ajuda muito a construir um determinado tipo de expressão de uma forma madura. No meu caso o circo, na Europa ele só ficou de uma forma bem colocada, de uma forma que o povo inveja, digamos assim, por conta de políticas públicas, então eu acho isso tira um pouco a arte da marginalidade. Eu acho que ela (a arte) sempre vai acontecer, ela não precisa acontecer dentro dessa estrutura, porém essa estrutura abre outros caminhos.
JM: sim, caminhos mais profissionais..
MF: Isso, ela tira o artista desse lugar de marginal, que é o lugar que ele é colocado, o lugar de algo que não deve ser reconhecido, que é algo que não é valorizado. "A pessoa artista ela não trabalha ela vive de uma forma lúdica", nem sempre. Aquilo tem pensamentos direcionados, há uma ação, uma força, um orçamento que você precisa manter no dia a dia como artista, seus materiais etc. Quando vc é artista do corpo, você tem que se cuidar e de toda uma série de recursos que, se a sociedade não te da um lugar de artista, ela te impossibilita de fazer isso de uma forma saudável. Então a gente vê artistas adoecendo, não tento oportunidade muitas vezes de se manter e afins.
JM: Você acha que hierarquiza também? Por que tem aquela coisa de um tipo de arte ficar muito visado, o circo por exemplo a gente não tem muito aqui no Brasil, uma cultura de visar como na Europa. Não se tem aquele reconhecimento como com teatro, cinema, balé...
MF: Ah eu acho que isso é um lugar histórico né. A música dentro da orquestra, o balé sendo uma dança clássica, uma dança pro rei, ele perpétua um tipo de estrutura e isso reflete na questão institucional. Por exemplo, nessas crises que a gente vê, o balé tá dançando sabe, tem professores de balé e provavelmente eles tão comendo e recebendo se não eles não iam estar lá, enquanto professores do circo muitas vezes não tão conseguindo comer, não conseguem organizar sua vida. Então rola, eu acho que rola muito só que o buraco é muito embaixo.
JM: Com o fim do ministério piora a situação da arte do circo e a forma com que ele se perpetua na sociedade?
MF: Olha eu acho que não só com o fim do ministério. O fim do ministério tira muita possibilidade de crescimento do circo, de abrir escolas reconhecidas, do circense ter as vezes um diploma ou um reconhecimento profissional dentro da burocracia, isso vai dificultar porque vai dificultar os caminhos. Mas assim, a arte circense, é uma arte de rua, ela resiste, só que a problemática vem antes porque existia um projeto de lei em algumas cidades, e isso ja vigora, que coloca o artista de rua não como artista circense porque "o artista circense tem que ta dentro de uma lona" e isso limita totalmente uma arte que é extremamente plural. Então eu acho que esse desmonte ja vem sendo feito.
Então eu acho que esse desmonte ja vem sendo feito, a gente ja vem sentindo tem um bom tempo, só que o fim é sempre algo simbólico né. Antes a gente até pensa: vamo tentar ali, as vezes se a gente fomentar e fazer um bom resultado... enfim, a gente tem um pouco de esperança mas quando anuncia um fim você fechou um caminho ali realmente.
JM: Como que você acha que vai se dar essa resistência? Como que o circo pode continuar existindo?
MF: Ah o circo sempre resiste na rua, nas lutas diárias os artistas que se mantém vivendo de sua arte que se mantém apresentando. Sendo reconhecido, eu acho que a resistência é existir e fazer sua arte acontecer. Eu acho que de uma contra partida duma busca dos outros meios de cultura como o jornal e a festa viabiliza a exposição, porque o artista não se vende sozinho ele precisa de uma relação tanto com o público de ser visto, de se dizer sobre. Então eu acho que precisa de uma articulação mesmo do meio cultural pra fazer existir, eu acho que é uma tarefa conjunta sabe?
JM: Os produtores da cultura goiana, porque eles não colocam o circo e pessoas que mexem com isso, com essa arte, dentro da produção cultural? Por exemplo, rola muita produção independente em Goiânia, só que a gente quase não vê circo nas produções culturais.
MF: Eu não sei se é um preconceito ou então se é uma desvalorização, porque parece que essa arte foi muito colocada na rua então parece que seguimentou. O que pode ser vendível nas produções independentes, nos rolês, nos festivais e o circo ficou uma coisa extremamente separada. Mas o curioso é que existem muitas festas de playboy que contrata muito circense, e paga uns cachês alto as vezes.
JM: Você acha que por exemplo produções iguais essa festa ela abre caminhos para que mais pessoas também tenham essa ideia de trazer esse tipo de arte para produções culturais?
MF: Com certeza, é sempre um espaço, principalmente com esse viés crítico né.
JM: falta espaço então?
MF: Às vezes, mas eu acho que falta espaço que se preocupe com o circo, por exemplo, a questão dos aéreos, da gente ir olhar um espaço com segurança que não coloque o artista numa situação de risco, que é o meu universo. Falta sim espaços desse em Goiânia que caibam, falta uma estrutura que comporte por que às vezes são algo um tipo de fazer que demanda um pouco mais de estrutura de cuidado.
JM: Você acha que o estado, com o fim do ministério, para o circo em específico, você acha que pode ser um futuro difícil para conseguir expandir essa arte a partir de agora?
MF: A única escola de circo do Brasil com diploma reconhecido pelo Mec, a escola nacional de circo, hoje ela da bolsas de 2.500 reais para um artista de circo treinar 8 horas por dia, ele fica em função da escola de manhã e a tarde. Com apresentações de segunda à sexta, é extremamente rigoroso e dá onde vem o dinheiro das bolsas? Vem do ministério, da Funarte, a escola é no Rio de Janeiro então tem uma outra estrutura. Eu acho que isso diretamente afeta muito, eu não sei se vai ter mais esse 2.500 reais pro artista se desenvolver durante o curso.
JM: Você acha que esse governo fascista pode vir a perseguir as pessoas de circo?
MF: Ah lógico, muito. Antes do cara la ser eleito a gente tava fazendo um curso de autodefesa, e assim Goiânia fomenta artistas de toda a América Latina, você vê muito venezuelano, colombiano, argentino... É uma galera resistente, todo mundo já tava pensando "então galera se ele ganhar a gente vai ora onde?". Então esse pensamento ele já existe, tipo a gente vai pra onde? Acho que aqui não vai ser um lugar pra gente sobreviver. Principalmente os venezuelanos que tem um estigma ja, imaginário, caótico assim, mas são pessoas.
A gente tem que se proteger né, eu acho quer proteger é sempre necessário, é prioridade. Pra resistir e existir né, pra continuar. O circo ele é milenar, ele vai se transformar e ele vai existir assim como todas as artes, a gente só precisa perguntar, a que preço a gente tá colocando a vida do artista? Essa é a questão sempre.