Marcus Vinícius Beck
Romancista mostra Cuba sexualizada e deprimente
Crítica
Ao longo do livro, escritor evita falar sobre questão política que marcou a história da ilha nos últimos 60 anos. Mesmo assim, crítica ao regime é contundente

Pedro Juan Gutiérrez em Havana.
Caso fosse um espião do Tio Sam, o escritor cubano Pedro Juan Gutiérrez, de 68 anos, certamente causaria menos estrago na ilha de Fidel Castro (1936-2016) como o fez ao longo dos últimos anos sendo um artesão das palavras. Até os defensores mais fiéis da Revolução de Sierra Maestra ficaram impressionados com a voz narrativa dos romances Trilogia Suja de Havana (1998) e O Rei de Havana (1999), primeiro e segundo livro lançados no Brasil, respectivamente. Nos dois, a mesma premissa: mostrar a miséria da capital cubana, que faz tudo para aguentar o embargo dos Estados Unidos.
Em nenhum momento no decorrer do livro sequer o escritor cita a questão política. Mas sua crítica é mordaz. À medida que o leitor vai virando as páginas, o significado da palavra “marginalizado” fica bastante claro na sociedade em que esse termo não deveria existir. Fidel e Che Guevara (1928-1967), os dois maiores nomes da Revolução Cubana de 1959, que completou 60 anos no último dia 1°, tinham como propósito combatê-la. Gutiérrez escancara a forma com que o regime conseguiu controlar a população a tal ponto de a moeda norte-americana circular apenas em uma parte do país.
O protagonista de O Rei de Havana Reynaldo, mais conhecido como “Rey” de Havana, uma espécie de alter-ego do autor, é um adolescente que vê tragicamente a família - a mãe era louca e batia nos filhos, a avó muda e o apartamento em que moravam o lugar “mais porco do edifício moderno”. Após escapar do reformatório para onde foi enviado, episódio retratado no início da obra, Rey perambula pela capital com o objetivo de encontrar um destino. Mas poucas vezes ele encontra a sorte, e quando a vê logo a sensação de reconforto vai embora.
Com uma narrativa sem poupar descrições eróticas e onde o protagonista deseja apenas encher a barriga para seguir em frente, Gutiérrez topa o amor na figura de Magdalena, mulata, esquelética e fétida como ele próprio. A áurea do romance lhe rendeu o título de “Charles Bukowski dos trópicos”, porém quem leu os livros do velho safado sabe que tal rótulo é um exagero - a leitura de O Rei de Havana requer estômagos mais fortes do que o necessário para digerir qualquer romance de Bukowski. Mas isso não quer dizer que o esforço não valha a pena.
“Eu pinto, vendo algum quadro quando posso e escrevo artigos para alguns jornais da Espanha e da Argentina. Os livros não dão dinheiro suficiente” - Pedro Juan Gutiérrez, em 1999, durante entrevista à jornalista Cynara Menezes
Descarado e com uma personalidade guiada por uma revolta interna, Rey se envolve com uma travesti, com uma velha que oferece vários cuidados a ele e com uma deficiente mental. Essas aventuras, contadas com enorme intensidade, fazem com que o leitor não tenha tempo para recuperar o fôlego e provocam uma esperança de que as coisas deem certo ao protagonista. E não dá. Para os que leem o texto de Gutiérrez fora da ilha, trata-se de uma contrapropaganda pura que não tem nada parecido com as matérias publicadas no jornal estatal Granma.
O final é perturbador e absurdo. Quem teve leu a Trilogia Suja de Havana vai achar que o escritor cubano repetiu em O Rei de Havana a velha forma de sucesso do primeiro romance, mas nem por isso a obra perdeu todo o brilho de mostrar uma Cuba que não aparece nos cartões postais. Talvez seja por conta disso que não faz diferença ele publicar o livro por lá ou não: toda a realidade narrada por Gutiérrez é vivida pelas pessoas nascidas em Cuba. Em função dessas características, o escritor contribui com jornais espanhóis e argentinos para conseguir pagar suas contas.
Afinal, quem seria maluco ao ponto de empregar um cara tão perigoso, não é mesmo?
Caso peculiar

Pedro Juan Gutiérrez é um caso peculiar na literatura da ilha de Fidel. Apesar de suas obras serem vistas com maus olhos por adeptos do regime castrista, ele decidiu ficar em Havana e não trilhou o mesmo caminho dos escritores Cabrera Infante (1929-2005) e Zoé Valdés (1959) e sempre quis olhar para Cuba a partir de baixo. Lançado no Brasil pela editora Companhia das Letras, os romances Trilogia Suja de Havana e Rei de Havana, ambos reverenciados pela crítica espanhola, contam com personagens que Fidel Castro sempre quis esconder: mendigos, prostitutas, gigolôs, contrabandistas e homossexuais.
Ao contrário do que o enredo de suas obras tende a mostrar, Gutiérrez nunca teve a pretensão de misturar arte literária com política, centrando muito mais seus livros em drogas, rum e salsa do que em anticastrismo - por sinal, os romances do cubano podem se aproximar da ideia de Jornalismo Gonzo. Mas ele narra com maestria esse cotidiano ao ponto de as indiretas saltarem aos olhos do leitor por meio de frases curtas e duras - tal como o norte-americano e cronista da Grande Depressão, de 1929, Charles Bukowski. Embora publicado primeiro na Espanha e na Itália, Trilogia Suja de Havana e O Rei de Havana demorou alguns anos para chegar à ilha de Fidel.
Partindo desse pressuposto, quase tudo neles é real e autobiográfico - até mesmo a história do ataque a um cavalo morto por famintos ou a própria experiência de Gutiérrez como gigolô, catador de latas e vendedor de comida clandestina. Em entrevista à jornalista Cynara Menezes, no jornal Folha de São Paulo, em 1999, o escritor disse que apesar de a crítica literária apontar sua obra como magistral, não conseguia na época viver de literatura, tendo de escrever artigos para jornais em língua espanhola - fato já tratado nesta matéria.
“Eu pinto, vendo algum quadro quando posso e escrevo artigos para alguns jornais da Espanha e da Argentina. Os livros não dão dinheiro suficiente”, comentou o escritor cubana, na ocasião. “Creio que sou muito mais revolucionário do que outros que se puseram essa etiqueta e na realidade se converteram em reacionários, burgueses de direita. Acho que toda a minha literatura faz uma clara opção pelos pobres. Mas não a partir de um ponto de vista paternalista, longe deles, olhando-os à distância, mas de dentro, entre a gente que mais sofre”, finaliza.