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  • Rosângela Aguiar

A Existência

Entre Palavras e Sabores

Um conto atual

Foto: Júlia Lee

Rio de Janeiro chama-se a cidade onde tudo aconteceu (ou acontece?). Mais parecido com um mercado de mendigos, pobres e com fome. Jamais entendi o porquê do apelido “Cidade Maravilhosa”. Sempre me perguntei (e olha que moro aqui há uns 20 anos) porque Maravilhosa? Até hoje de maravilhoso vi 20% e já é muito, por que os 80% restantes são desastrosos. Suja de lama e conceitos. Tentei de tudo, em vão, para modifica-la e foi aí que tudo começou.


Cera vez conheci uma rapariga, Joana era seu nome. Possuía feições comuns e com uma capacidade de absorção de conhecimento totalmente incrível. Resolvi, então, ajudá-la. Dei-lhe casa, comida e estudo. Me ajudou bastante no meu ofício de cineasta (como todos, eu era cheio de utopias e como... e como...)


Eu vivia prá lá e prá cá, sempre atarefado com um filme a ser produzido: roteiro, cenário e atores. Tudo pronto, mas faltava o imprescindível: o dinheiro. E nesse mundo em que se vive, nada se faz sem dinheiro, muito menos um filme, melhor dizendo, um longa na nossa gíria. E eu como todo cineasta, além de utópico, duro!


Mas voltando à Joana. Eu lhe ensinei muito da minha arte de filmar (até parece que eu sou um Bergman da vida, não que eu queira desmerecer o meu trabalho, mas sabe como é, cineasta brasileiro né!) e um pouco da arte de escrever. Você sabe que a danada escrevia bem!


Como eu ia dizendo e não disse nada, vou contar como a conheci e porque a ajudei.


Te contei que ela possuía feições comuns e um jeito meigo de olhar, não que eu tivesse pena dela, mas ela só possuía 14 anos e eu 35. Ela nada sabia da vida e eu o suficiente para lhe ensinar. Ela era filha da empregada de um casal amigo meu e depois que a mãe morreu, não sabiam o que fazer com a menina. E eu, solteiro, com um instinto paternal e com necessidade de uma companhia, a peguei para acabar de criar (já era bem grandinha para se iniciar a criação).


Adoro criações e esta foi mais uma que eu fiz. Ela cresceu ao meu lado, me ajudando nos meus trabalhos. Como naquela época (era aquela época, a de 1970) eu não podia mostrar meu trabalho, o fazia para Joana, ensinando-lhe a ler, escrever, menos cozinhar porque isso ela fazia muito bem.


Não vamos nos perder. Ela aprendeu bastante coisa e já estava ficando bastante culta e se bobiasse, mais que eu. Como disse, ela escrevia muito bem e pretendia lançar um livro, escreveu vários textos. Alguns chegaram a ser publicados em um jornal, faz tanto tempo que não me lembro qual. (não pense que estou desmerecendo-a, mas passaram-se 15 anos e a memória começa a ficar curta).


Um belo dia, acho que era verão, ou teria sido inverno? Essas coisas não fazem diferença nesta cidade do Rio de Janeiro. Neste dia ela saiu de casa para fazer compras. Ela só tinha 18 anos. Foi quando encontrou um rapaz, acho que era da mesma idade, na rua do Ouvidor. Naquele tempo as pessoas se olhavam sempre desconfiadas. Ela, apesar de toda a cultura que eu havia lhe dado, era humilde e ela era humilde mesmo. Se enamoraram através dos olhares cúmplices em uma lanchonete na mesma rua (não lembra? A do Ouvidor).


E como em todo romance, acabaram se conhecendo, conversaram e ela se mostrou segura de seus atos como nunca havia se sentido. Ele era meio tímido, mas a chamou para um passeio no dia seguinte. E foi aí que ela começou a se destruir. E isso me dá uma enorme tristeza só de pensar, de lembrar... Mas vamos lá.


No dia seguinte, acho que era uma terça-feira, se encontraram em frente à pirâmide na Praia do Flamengo. Passearam, comeram pipoca (bastante tradicional) e conversaram por horas. E o mais comum aconteceu: se apaixonaram. João era seu nome. Era de família pobre como a dela, morava no morro da Rocinha, mas era trabalhador, gostava de se vestir bem e de estudar também (até rimou, sentiu?). João e Joana, belo par, até o dia fatídico de sua vida.


Resolveram se casar três meses depois. Foi uma dessas paixões súbitas que quando bate não conseguimos frear. Paguei quase tudo do casamento, tudo muito simples porque meu filme, para variar, não havia, ainda, sido lançado e eu só tivera prejuízo. E também por causa da família do João que era bastante simples. Uma pena e um grande desperdício foi este casamento, porque filhos de pais machistas, eternamente machistas. Não que eu negue a minha criação, mas a minha cabeça era de cineasta bastante revolucionário. Ele era machista, queria ela em casa. Um detalhe que ia me esquecendo, foram morar em um barraco ao lado da casa dos pais do João, que morreram poucos anos depois. Ele fazia questão de sustenta-la e não a deixou mais trabalhar comigo. Com isso perdi a minha melhora funcionária e uma amiga, pois ele sentia terríveis ciúmes dela.


Joana não suportava mais a ideia de vê-lo num bar bebendo e com outras mulheres. E só tinha se passado dois ou três anos. Ela vinha às escondidas na minha casa me contar seus problemas. Eu a aconselhei a deixa-lo já que não aguentava mais e o amor estava acabando. Ela dizia que não, jamais faria, porque não era como eu, tão liberal. No entanto, fez pior.


Um belo dia, este eu me lembro bem. Ela me telefonou assustado e com raiva, dizendo que poderia cometer uma loucura. Tentei acalma-la e ela me parecia melhor. Mas com sua personalidade mutável, nunca se sabia o que poderia fazer. Fui acudi-la mesmo sabendo que João não gostaria da minha presença no local.


Joana tentou contra a existência preciosa naquele humilde barracão por causa do João. Tomou doses excessivas de arsênico, não sei onde conseguiu o veneno. Passou muito mal, quando a encontraram já estava morta e toda rasgada. Provavelmente se debateu de tanta dor. Que Deus a conserve em paz. Mas que Deus é este que levou a Joana. A sua dor, assim como de milhares de mulheres, não saiu no jornal. Ela sofria por causa do João que nada sofreu com sua morte. Ou melhor, sofreu, perdeu a empregada, antes no namoro tão apaixonado. Ninguém sentiu a dor da Joana, a dor que a matou.


Por graças desse Deus ambíguo, a mãe de Joana já havia falecido muito ante e não viu tão brutal tragédia.


A tragédia de Joana foi e é igual à de outras mulheres. E, mesmo assim, de nada adiantou ter-se matado, pois pouco tempo depois, já estava lá. O seu João dependurado no pescoço de uma Maria da vida.


E eu, que era tão seu amigo, perdi duas vezes a amiga, companheira e ajudante. Sentirei sua falta. Não deixei de publicar seu livro “Memórias” que contava a sua vida na favela e era ela o papel principal.


Nunca me conformei com a morte de Joana. Acho que nunca vou me conformar...Não deixei de lado o meu filme e lá fui pelas ruas atentar contra a existência nesta cidade do Rio de Janeiro, que de Maravilhosa, só o nome.


E as ruas continuam as mesmas. Os Joães idênticos, mas a Joana, esta permanece única.


*Este breve conto foi escrito por mim em dezembro de 1985. Olhando nos meus guardados o encontrei e de tão atual, resolvi publicar. Afinal, passados quase 40 anos, ainda vemos muitas histórias semelhantes, de todo tipo de violência contra mulher, mesmo hoje tendo a Lei Maria da Penha e uma maior consciência por parte de muitos. Ainda existem muitos Joães em todas as classes sociais por aí que acham que as mulheres são suas propriedades, suas empregadas, suas escravas e não podem ter vida própria, pensar por si, ser quem elas desejam e sonham ser. Somos todos seres humanos, com direitos e deveres iguais, com crenças, sonhos e desejos que devem ser respeitados igualmente. Por que tudo começa com o Respeito!

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