Marcus Vinícius Beck
Raul dedo-duro?
Música
Biógrafo do cantor baiano sugere que ele teria entregue Paulo Coelho para ser torturado no Dops

FOTO: REPRODUÇÃO
“É possível que muitos heróis do rock tenham surgido da névoa do conformismo. Da pasmaceira coletiva, uma voz elevada se ergue empunhando destemor e fúria, dando contornos a sentimentos feridos, vontades adormecidas, presságios e indignações”. Essas frases abrem a biografia Raul Seixas: Não Diga Que a Canção Está Perdida, do jornalista Jotabê Medeiros - obra foi publicada em novembro pela editora Todavia. Mas, perguntará com razão o leitor, como é possível ele ter se tornado uma lenda se vivera apenas 44 anos?
Sim, foi uma vida breve, intensa, maluca, e com grande produtividade ao longo de mais de duas décadas de carreira. Raul deixou 312 canções registradas como sendo de sua autoria, misturando ao rock and roll gêneros musicais improváveis, como samba, baião, brega, xote, folk, tango e tantos outros. Também cantou versos libertários, muitos deles com cunho anarquista, que estão marcados na história da música brasileira. Quem nunca bradou por aí o eterno “viva, viva a sociedade alternativa/ faz o que tu queres/ há de ser tudo da lei”?
Medeiros, contudo, mergulha nas contradições que há na figura de Raul. Por sua faceta libertária, o cantor foi acossado pela ditadura e teve de comparecer ao Departamento de Ordem Política e Social (Dops) para depor incontáveis vezes. Suas músicas incomodavam os militares, como incomodam até hoje, e são uma ode à liberdade plena, e um grito contra a submissão às regras impostas pelo establishment. Mas existe aí uma relação, digamos, um tanto ambígua: Raul chegou a ter um segurança do Esquadrão da Morte.
“Muitas vezes ele foi seguido e questionado pela ditadura, e uma dessas vezes está registrada em um relatório de um policial do Dops, redigido 36 dias antes de Raul levar Paulo Coelho consigo para depor. Essa revelação causou certo impacto”, diz o biógrafo, com exclusividade, ao Jornal Metamorfose. Segundo o jornalista, Raul teria entrado na sede do órgão, ficado nele por aproximadamente meia hora e retornado com a designação de dar o recado para o amigo - o que ele buscara fazer de maneira cifrada. Mas não deu certo.
Clipe da música 'S.O.S', do cantor e compositor Raul Seixas - FOTO: REPRODUÇÃO/ YOUTUBE
A polícia política foi ao apartamento do escritor e prendeu-o junto com a namorada. Foi solto no dia seguinte e apanhou um táxi com Raul, porém os militares capturaram Coelho e o levaram para um lugar desconhecido. Lá, sofrera torturas. “A relação entre os dois esfriou. Eles continuaram, por força de contrato, a colaborar em discos, e seguiram companheiros. Mas logo acabou a produção musical da dupla. Criou-se um relacionamento ambíguo, e Raul algumas vezes tentou responder sarcasticamente à influência de Paulo em algumas canções”.
Raul e Coelho se conheceram em 1972 e tinham interesses em comum nas áreas de ufologia, misticismo e esoterismo. O ‘mago’ apresentou, conforme mostra a cinebiografia Não Pare Na Pista, do diretor Daniel Augusto, Raul às drogas - músico era careta até então. Apesar de a relação dos dois degringolar após a prisão do escritor, em meados da década de 1970 criaram as principais músicas do rock brasileiro, como Eu Nasci Há Dez Mil Anos Atrás, Maluco Beleza, além dos discos Gita, de 1974, e Novo Aeon, lançado no ano seguinte.
Repercussão
Em outubro, o ‘mago’ se manifestou no Twitter contra internauta que queria ‘cancelar’ Raul após reportagem do jornal Folha de São Paulo revelar suposta relação dele com os militares. “Não faça isso. Eu vi os documentos que Jotabê me enviou, já tinha conversado com Raul a esse respeito (um dia que ele estava, digamos...) e águas passadas não movem moinhos”, escreveu. Dias depois, também na rede social, Coelho disse: “Começo a ter sérias dúvidas dos documentos que o Jotabê Medeiros me enviou (...). Acho que o cara quer apenas vender a porra do livro”.
O jornalista Jotabê Medeiros afirmou ao Metamorfose que a repercussão da reportagem da Folha provavelmente deixou o escritor assustado. “Foi deselegante comigo, em alguma medida. Mas eu jamais urdiria uma coisa dessa natureza para me autopromover, sou repórter há 35 anos e tudo que tenho como patrimônio é minha reputação. Não gosto de virar notícia, gosto de apurar a notícia”, esclarece. “Apenas fiz um livro que busca restabelecer algumas verdades, e sei que isso tem um preço em uma sociedade que escamoteia as verdades”.
Medeiros diz ainda que Raul Seixas: Não Diga Que a Canção Está Perdida é uma obra soberana, e é um livro que fala por si só. “O que ele contém é o que eu penso, e respondo por isso”, afirma o autor. “Tenho por princípio sempre estruturar a narrativa em cima da produção musical do artista, analisando seus discos um a um e tomando notas. Essa audição leva a questões fundamentais: como foi feita tal canção? Qual a circunstância? A que ele se referia nos versos”, pontua o jornalista, que também é autor de Belchior: Apenas Um Rapaz Latino Americano, biografia do cantor e compositor cearense.
“Responder a essas questões conduz a outras, que às vezes somente testemunhas da produção podem ajudar a esclarecer. No caso do Raul Seixas, também facilitou a ajuda de um amigo, no início da pesquisa, que me forneceu fotos do diário de Raul que ele tinha fotografado em 1988”, conta. O amigo a que o jornalista se refere é o fotógrafo Juvenal Pereira, famoso nacionalmente por ter integrado - entre outras coisas - a equipe da revista O Cruzeiro na década de 1970.
Ficha Técnica
‘Raul Seixas: Não Diga Que a Canção Está Perdida’
Autor: Jotabê Medeiros
Gênero: Biografia
Editora: Todavia
Preço: R$ 69,90