Marcus Vinícius Beck
Leila desbocada
O Pasquim
Atriz Leila Diniz desafiou a moral e os bons costumes numa entrevista bombástica que mudou a cara do jornalismo brasileiro

Leila Diniz na praia de Ipanema em 1967- Foto: Arquivo/ Acervo Histórico O Pasquim
O ano é 1969. E a atriz Leila Diniz (1945-1972) dispara: “Eu posso amar uma pessoa e ir para a cama com outra. Já aconteceu comigo”. Essa declaração – e tantas outras – chocaram a conservadora e patriarcal sociedade brasileira da época, em uma entrevista bombástica concedida ao jornal O Pasquim que completou 50 anos no último dia 20. A conversa com a fina-flor do jornalismo brasileiro – de Tarso de Castro a Sérgio Cabral, passando por Jaguar, Luís Carlos Maciel outros – fez história.
Um ano antes, o ditador Arthur da Costa e Silva (1899-1969) baixou o Ato Institucional Número 5, o AI-5, e inaugurou o período mais sombrio da ditadura civil e militar (1964-1985). Liberdade de expressão, de livre manifestação artística e direitos políticos – só para citar algumas restrições impostas pelos ‘milicos’ – foram sucumbidas pelo regime. Além disso, opositores foram perseguidos, torturados, assassinados e os corpos das vítimas da ditadura ainda hoje estão desaparecidos.
Foi neste contexto que a atriz Leila Diniz, conhecida por ter integrado em 1966 o elenco do longa-metragem Todas as Mulheres do Mundo, do diretor Domingos de Oliveira, concedeu a entrevista mais revolucionária da história do jornalismo brasileiro. E tudo isso durante os anos de chumbo. Realizada no sábado, dia 8 de novembro de 1969, na casa do jornalista Tarso de Castro, a matéria foi publicada exatamente como aconteceu, com palavrões e expressões coloquiais.
Amiga dos entrevistadores, Leila falou sobre quase tudo – desde a perda da virgindade, sua vida sexual e o trabalho com o cineasta Nelson Pereira dos Santos – em uma prosa que fizera dela um ícone da liberdade. Mas houve um preço a ser pago pela atriz. Quando a matéria chegou às bancas, ela passou a ser perseguida pelos militares, perdendo trabalho e tendo de vender batas indianas em Ipanema, no Rio de Janeiro, para sobreviver. Como se não bastasse, a ditadura ainda instaurou o “decreto Leila Diniz”.
Fotos: Reprodução/ Acervo Histórico
Naquela época a imprensa já estava sob a égide da censura prévia e, para evitar problemas com os militares, os jornalistas de O Pasquim optaram por manter os asteriscos onde Leila falava algum palavrão – foram 72 ao todo. O recurso gráfico fazia com que o leitor colasse ali seu próprio repertório de palavras de baixo calão, como “Acho uma (*) fazer papel de sexy” ou “Eu tinha atitudes físicas para a me desinibir, eu nadava, eu dançava, eu (*).
Com a entrevista da atriz, a tiragem do jornal subiu de 60 mil para 117 mil exemplares, iniciando um fenômeno que faria com que o periódico chegasse nos próximos números a 200 mil. Para efeito de comparação, a então recém-lançada no mercado Veja, com equipe que tinha gente do calibre de Mino Carta, não passava dos 70 mil exemplares. Graças a Leila Diniz e seus asteriscos transgressores nascia na imprensa brasileira um marco que simbolizava a resistência à ditadura.
E, é claro, produto jornalístico genuinamente contracultural - o mais importante da chamada 'imprensa nanica', que era de oposição aos militares.
Telenovelas
Um dos efeitos colaterais – dentre tantos outros – gerados à atriz Leila Diniz pela entrevista ao Pasquim foi a falta de trabalho nas telenovelas. Após a publicação da reportagem, ela passou a receber apenas convites para atuar em filmes do circuito underground – muitos deles, diga-se de passagem, eram idealizados por amigos – e espetáculos de teatro de revista, como o bem-sucedido Tem Banana na Banda, onde improvisava a partir de textos de Oduvaldo Viana Filho e Luís Carlos Maciel.
Na época em que Leila passava por seca de trabalhos, o apresentador Flávio Cavalcanti – considerado por ela “um mau caráter, um patife” e apoiador da ditadura civil e militar – foi o único que lhe dera uma cadeira de jurada no seu programa de TV. Além disso, no dia em que a polícia esteve no estúdio para prender a atriz, Cavalcanti deu um jeito e fez com que ela saísse pelos fundos do estúdio, escondendo-a por um tempo em seu sítio na cidade de Teresópolis, na região serrana do Rio de Janeiro.
Trailer do longa 'Todas as Mulheres do Mundo', primeiro filme de Leila Diniz - Foto: Reprodução/ Youtube
Quase três anos depois da publicação da antológica entrevista ao Pasquim, a atriz – ainda sem trabalho – aceitou o convite para participar de um festival de cinema na Austrália. Com saudades da filha de sete meses, Janaína, fruto do relacionamento que Leila teve com o cineasta Ruy Guerra, resolveu voltar para o Brasil antes da data prevista. O avião em que ela estava, no entanto, explodiu na Índia. A morte da atriz, que tinha apenas 27 anos à época, provocou comoção nacional. Era 14 de junho de 1972.
Formada no magistério, Leila chegara a ser professora do jardim de infância. Aos 17 anos, casara-se com o cineasta Domingos de Oliveira, cujo relacionamento durara três anos. Foi nesta época em que começara a trabalhar como atriz na TV Globo. Anos mais tarde, conhecera o cineasta Ruy Guerra e casara-se com ele. Ao todo, Leila Diniz participara de 14 filmes, 12 telenovelas e dezenas de peças teatrais.