Marcus Vinícius Beck
A alvorada de Dilma
Resenha
Documentário retrata bastidores do processo de impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff

A ex-presidenta conversa sobre história com as diretores de 'Alvorada', em cena do documentário Foto: Divulgação
Que o leitor, esse ser que, presumo, deve ficar sem entender nada ao deparar-se com capas de jornais que escondem manifestações populares, não seja ingênuo: foi golpe.
Nada de impeachment, parlamentares preocupados com o futuro Brasil ou, pior, que o processo seguiu os ritos do Estado Democrático de Direito. O que rolou lá nos longínquos anos de 2016 (sobretudo distante se pensarmos na velocidade do noticiário no Brasil que derrete no caldo do neofascismo) foi uma virada de mesa criminosa. Deu no que deu.
O ano é 2016, e a presidente Dilma Rousseff está reclusa no Palácio do Alvorada para enfrentar um processo de impeachment, que a retirou do cargo para o qual fora eleita em 2014. Com a serenidade de quem lutou contra a ditadura militar, Dilma olha para a câmera e, calma e lucidamente, diz: “em tudo o que nós fazemos tem uma parte que é o presente e tem uma parte que é o registro e a memória histórica desse período.”
Entre maio e setembro do mesmo ano, a ex-presidenta Dilma Rousseff (PT) dedicou seu tempo para se defender do processo de impeachment ao qual respondia no Congresso Nacional. Foram dias de intensa mobilização, junto com seus advogados, movimentos sociais e aliados, para traçar uma estratégia que lhe tirasse da delicada situação política, mas isso não chegou a acontecer, e, bem, a ex-combatente da VAR-Palmares abriu alas. Em seu lugar, um homem dos bastidores, sem brilho, nem nada: era Michael Temer, político conservador do MDB.
Ou seja, fisiológico por excelência. Mas isso são outros quinhentos. Durante quase 90 minutos, "Alvorada" retrata os bastidores do Palácio do Alvorada após a aprovação da destituição de Dilma pela Câmara dos Deputados, com metáforas cinematográficas espertas, bem-construídas, de uma equipe que teve o privilégio de estar acompanhar in loco um período crítico da história brasileira – arrisco a dizer, até, que talvez essa seja a ruptura que sepultara a chamada República Nova, instituída após a Constituição Cidadã, aprovada pelo Congresso Nacional em 1988.
O filme, comandado pelas experientes cineastas Muylaert e Politi e já disponível nas plataformas de streaming, abre com o discurso do então deputado federal do baixo clero, Jair Messias Bolsonaro. “Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo exército de Caxias, pelas Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de tudo, o meu voto é sim”, ruminou Bolsonaro, no parlamento, durante a votação do impeachment.
Em questão de segundos, corta: Dilma Rousseff, agora, está entre cortinas em meio ao Palácio do Alvorada, numa fotografia deslumbrante que lhe retrata na solidão do poder que ruiu. É nesse ponto que, ao exigir um conhecimento prévio do espectador, as diretoras apontam em um arriscado estilo de cinema documental. Ok, isso não é uma invenção de Muylaert e Politi, e sim mais ou menos a escolha estética e narrativa adotada por Glauber Rocha, junto dos portugueses em “As Armas e o Povo”, produção que retrata as manifestações que expeliram o salazarismo.
Trailer do documentário 'Alvorada'
Se Glauber vinculou-se foi às ruas, local em que ele precisava estar para captar o espírito do povo em entrevistas, a situação se inverte em “Alvorada”, e precisamos ter em mente que os desdobramentos históricos do processo de afastamento de Dilma não ocorreram no Palácio do Alvorada: é nesse momento que você precisa recorrer ao Google – é como. com a licença de uma metáfora, se pegasse o livro-reportagem “Sobre Lutas e Lágrimas”, do jornalista Mário Magalhães, e fizesse uma pesquisa prévia para compreender o que 2018 significou para o nosso apocalipse.
Faz sentido? Há coerência? Sentido? De fato, não: a obra do repórter trata exatamente sobre o ano de 2018 e suas turbulências sociopolíticas que desembocaram na calamidade que atende pelo nome de Jair Bolsonaro e, por hora, é o inquilino do Palácio do Planalto.
Voltando: é aí que o filme descamba para a futilidade, flertando com a desimportância, com conversas de Dilma descontextualizadas entre assessores, militantes e apoiadores sem nenhum sabor cinematográfico e, em geral, filmada a partir de uma estética que mais confunde do que esclarece. A ex-presidenta empilha citações de João Saramago, Machado de Assis e Guimarães Rosa, conversa com advogados, cria táticas para se defender. Quase um reality show.
Melhor dizendo, é um reality, com a possibilidade de as diretoras tornarem público o que deveria ser privado, e fazem disso o guia de “Alvorada”. As cenas em que os trabalhadores vão de um lado para o outro cumprem um papel interessante - certamente o ponto - na narrativa, mostrando que, por mais que houvesse uma tensão, os mais pobres não poderiam parar. Artistas vão visitar Dilma, como Chico Buarque, e colegas de partido, do calibre de Luiz Inácio Lula da Silva.
Sem contar, óbvio, as conversas sobre os votos no Senado para evitar o impeachment, quando os aliados fazem as perguntas, até que... corta!
Talvez fosse mais honesto “Alvorada” assumir os funcionários do Palácio como os verdadeiros protagonistas do filme, mas nem isso acontece. Quer dizer, não temos um foco narrativo pré-definido e tampouco sabemos o que ocorre paralelamente às quatro paredes do Alvorada em meio ao processo de impeachment. Fica tudo muito vago, solto e nós nos perguntamos: o que é isso mesmo que está acontecendo aí? Que se passou esse episódio?
Sem mais, “Alvorada” é um filme sem pé, nem cabeça, mas que cumpre uma função protocolar num país que derrete no caldo do fascismo. Mesmo com seus problemas estéticos, nem tudo é um desastre no documentário: afinal, não é todo dia que uma presidente abre a porta do Alvorada para duas cineastas cujas histórias estão ligadas ao cinema de ficção, e não ao documentário.
‘Alvorada’
Diretoras: Anna Muylaert e Lô Politi
Gênero: Documentário
Disponível nas plataformas de streaming