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  • Foto do escritorMarcus Vinícius Beck

A arte de flanar pela rua

Literatura

Jornalista, dramaturgo, cronista e homossexual foi um dos precursores do texto jornalístico após a profissionalização da imprensa brasileira, no século 20


João do Rio: escritor conhecia as ruas e sua gente na intimidade - Foto: Autor Desconhecido



Parem as máquinas: há cem anos completados hoje morria a alma encantadora das ruas. Jornalista, cronista, crítico, ensaísta, romancista, tradutor, dramaturgo, homossexual e flâneur, João do Rio tinha 39 anos quando apanhou um táxi na porta do seu jornal “A Pátria”, no largo da Carioca, e partiu para Ipanema, onde morava. No caminho, sentindo-se mal, pediu para o motorista estacionar e pegar-lhe um copo d 'água. Ao voltar, o chofer se deparou com João já sem vida – vítima de um infarto.


O sepultamento, três dias depois do piripaque fatal, reuniu 100 mil pessoas que, num cortejo que percorreu todo o centro do Rio de Janeiro até o cemitério São João Batista, em Botafogo, figura na memória da ex-capital da República como um das despedidas mais catárticas já vistas na história da metrópole à beira-mar. João era muito novo.


Se flanar é ser vagabundo e reflexivo, como o próprio escritor sentenciou na abertura de “A Alma Encantadora das Ruas” (1908), foi isso que lhe serviu como instrumento para elaborar descrições saborosas sobre a vida na cidade, com as quais prendia o leitor pelos detalhes que narrava. “Era 7 horas da noite. Na sala cheia de espelhos da confeitaria, eu ouvia com prazer o Pessimista, esse encantador romântico, o último cavalheiro que sinceramente odeia o outro”, descreve o jornalista, em “Modern Girls”.


João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho começou no jornalismo em 1899, aos 18. Entre 1900 e 1903, publicou nos jornais O Paiz, O Dia, Correio Mercantil, sempre assinando diferentes pseudônimos. Na primeira vez que saiu um texto seu como João do Rio, o artigo “O Brasil Lê”, ganhou uma projeção importante nos ciclos literários embranquecidos e elitizados da época, mas não lhe poupou rusgas com o também escritor Lima Barreto: em “Escrivão Isaías Caminha”, é retrato caricatamente.


Com uma coletânea de reportagens publicadas na Gazeta de Notícias, saiu seu primeiro livro: “As Religiões do Rio” (1904) antecipou pelo menos cinco décadas aquilo que seria consagrado nos Estados Unidos como jornalismo literário por Tom Wolfe, Truman Capote, Norman Mailer e Gay Talese. Os escritos, aulas de como observar hábitos e costumes da sociedade, mostram que é possível redigir textos bem acabados na correria contra o relógio que alimenta o espírito das redações.


Jornalismo na veia, escritor por ofício. Onde ninguém, há de se reconhecer, brilhou como ele. João do Rio captou os sentimentos da belle époque do Rio, sabia na intimidade como funcionava o fluxo das ruas e das pessoas que nelas habitavam.


Em uma de suas crônicas-reportagens, o jornalista disfarçou-se de traficante e revelou aos leitores cenas de horror dos viciados. Para construi-las, recorreu a uma técnica de apuração comum – a de se passar por alguém que conhece bem a realidade a ser retratada – e não poupara o leitor de provocações: “Nunca frequentou os chins das ruas da cidade velha, nunca conversou com essas caras cor de goma que param detrás do Necrotério e são perseguidas, a pedrada, pelos ciganos exploradores? Os senhores não conhecem esta grande cidade que Estácio de Sá defendeu um dia dos franceses.”


Não conheciam, de fato. “Eu amo a rua. Esse sentimento de natureza toda íntima não vos seria revelado por mim se não julgasse, e razões não tivesse para julgar, que este amor assim absoluto e assim exagerado é partilhado por todos vós”, ensina João, no primeiro texto de “A Alma Encantadora das Ruas”. E advoga: “hoje é mais amargo o riso, mais dolorosa a ironia. Os séculos passaram, deslizam, levando as coisas fúteis.”


Ao estrear no jornal Gazeta de Notícias, como titular da coluna A Cidade, dizia que iria acompanhar o trabalho de renascimento do Rio de Janeiro. Noutras palavras, acompanharia in loco as reformas urbanas radicais pelas quais a cidade passava, como demolição de morros e bairros para dar lugar a largas avenidas: seguia-se a cartilha do prefeito parisiense Haussmann que, por exemplo, influenciou capitais da América Latina ao longo do século 20. O Rio tornava-se moderno antes de o próprio Brasil.


Nos textos, documentos históricos e leitura prazerosa, João apontava os privilégios das elites do período, ao mesmo tempo em que era um entusiasta das medidas urbanas que transformaram o Rio de Janeiro, o que quase não aparecia em suas reportagens. Ele via algo nocivo nisso, com a finalidade de expulsar as classes menos desfavorecidas da cidade. E foi, por isso, um dos criadores do termo “favela”. Ou seja, as reportagens do jornalista, mais de um século depois, são documentos da história brasileira.


Nascido em 1881, João dividiu o jornalismo brasileiro em antes e depois dele, além de ter escrito peças teatrais como “A Bela Madame Vargas”, que estreou no Teatro Municipal, em 1912, sucesso de público e crítica – sendo levada, inclusive, para Portugal, Espanha, França e Estados Unidos. Vanguardista, escrevia uma coluna de cinema antes mesmo dessa arte chegar no Brasil. É, por essas e por outras, preciso ler João do Rio.


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