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A beleza dos pelos pubianos

Comportamento


Reflexão sobre hábitos de depilação têm ganhado as redes sociais. Entenda como a sociedade molda o comportamento humano


Do século 19, quadro 'A Origem do Mundo' retrata mulheres naturais- Foto: Sebastian Bozon/ AFP/ Reprodução


Marcus Vinícius Beck


O fetiche masculino da vagina sem pelo sempre existiu. É fruto do nosso impulso patriarcal. Curtimos, nós – sim, nós! – machões vacilões que não dançamos e estamos mergulhados na mais tosca assepsia da estética corpal, metermos o bedelho sem sermos chamados. Não é, vejam vocês, de hoje que essa heresia existe. Na carta de Pero Vaz de Caminha, em 1500, já apareciam os caducos do Velho Mundo enfiando o nariz onde não eram chamados. “Suas vergonhas, tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as nós muito bem olharmos, não se envergonham”, atesta o gajo. Vaz de Caminha, seu safado!


Se regredirmos à História, vamos ver que a ética cristã sempre guiou o comportamento humano. Na arte barroca onde a teocracia era o centro da beleza artística, as mulheres tinham suas glabras, inteiramente desprovidas de pentelhos, é bom lembrar, retratadas nos quadros. Era como se a ausência dos pelos fosse o velório da malícia. O púbis raspado, tal como o de uma criança, era – era, não, senhores: é, corrijo! – a personificação da pureza em forma de boceta. Ao que tudo indica, a primeira vez que a mata atlântica feminina apareceu na pintura ocidental é no óleo sobre a tela “La Maja Desnuda”, de Goya.


Óleo sobre a tela 'La Maja Desnuda', de Goya - Foto: Reprodução


Aquela penugem, todavia, era discreta. Quase não apareciam os pelos pubianos, chamar o Greenpeace, por gentileza... Tal tabu seria rompido de forma triunfal apenas no século 19, com o realista francês Gustave Flaubert, em “Origem do Mundo”, de 1866. Menos de cem anos depois, o austríaco Egon Schiele retratava suas musas au naturel, sem estoques, como elas de fato vieram ao mundo e povoaram-no com seu charme. Na literatura, o escritor americano Henry Miller também pregou a preservação dos pelos. “Os pentelhos é que fazem a buceta misteriosa”, anota em “Trópico de Câncer”, de 1934.


“Acho urgente e necessária a conversa sobre esse assunto para que isso dê liberdade para que cada mulher descubra de qual forma se sente mais à vontade com seu próprio corpo e assim decidir o que fazer e quando fazer. Eu entendo as estruturas que mantém o mercado da depilação e estética num geral”, diz a fotógrafa Marcela Guimarães, autora do projeto fotográfico “Mulheres Adultas Têm Pelo”. “Há uma grande dificuldade num geral das pessoas verem alguém fazendo algo diferente do que nos foi ensinado como "normal e ficar sem pegar isso pra si, só ver, identificar que é diferente e falar "ok, beleza, próximo”’, arremata.


"Acho urgente e necessária a conversa sobre esse assunto para que isso dê liberdade para que cada mulher descubra de qual forma se sente mais à vontade com seu próprio corpo e assim decidir o que fazer e quando fazer" - Marcela Guimarães, fotógrafa e autora do projeto "Mulheres Adultas Têm Pelo"

Sabe-se que o hábito de desmatar a cabeleira vaginal é uma opressão social. Adepta do naturalismo corporal, a fotojornalista Júlia Lee diz que sempre sentiu-se incomodada com as convenções depilatórias impostas pelo patriarcado. “Sempre vi como horrível o fato de ter de sentir dor para parecer bonita. Homem e mulher têm pelos, eles não estão ali à toa, estão ali para proteger. Depilação é uma convenção imposta pela sociedade patriarcal para infantilizar e mutilar cotidianamente o corpo feminino”, analisa. Não convêm, de fato, os homens opinaram sobre a depilação ou a falta dela. O corpo não é nosso e a última palavra também.


Mais uma vez


O conceito estético de que mulheres devem ser completamente depiladas toma a indústria cultural mais uma vez no século 21, e em meio à pandemia de coronavírus. A depilação começou a ser datada por historiadores na Grécia Antiga e naquela época apenas homens tinham pelos nas genitárias. Mas, após a Revolução Industrial, no século 19, e com as mulheres trabalhando em fábricas, os vestidos perderam as mangas pela necessidade de mover os braços, e as axilas peludas - algo tão íntimo e sexual à época - era visto como impróprio. Removiam-se os pelos pras mulheres serem consideradas "moça de família”.


Na década de 1930 surge no mercado cremes depilatórios e aparelhos de depilação como produtos necessários dentro do consumo diário feminino. Trata-se de algo que foi reforçado brutalmente pela publicidade da época, e ainda hoje é. A imposição cultural da depilação das pernas e partes íntimas foi decorrente da evolução da indústria da moda, que começava a revolucionar o cenário dos anos 1960 com biquínis e roupas que mostravam as pernas. Entre 1960 e 1970 a discussão sobre a naturalidade dos pelos em mulheres tomou o movimento hippie e as feministas. Era o primeiro indício de luta contra essa indústria cultural.


Mulheres trabalhando nas fábricas no contexto da Revolução Industrial - Foto: Acervo Histórico


Agora, em meio à luta contra o coronavírus, revivemos esse debate antigo. “Se você se depila na quarentena porque não está sendo vista por ninguém, tem certeza de que se depila porque quer?”, é um questionamento comum feito por mulheres durante o período de isolamento social. Assuntos novos, velhos dogmas e caducos tabus. Assim como a depilação, se maquiar e usar sutiã todos os dias são deixados de lado. “Um monte de coisa que se faz, como pintar o cabelo, fazer unha, depilar e maquiar não são prioridades de quase ninguém nesse momento?”, ponderou a antropóloga Mirian Goldenberg, ao jornal O Globo.


De fato, a tendência é que o comportamento humano se modifique ao findar a pandemia. Discute-se sobre uma provável revolução sexual e cultural. Se olharmos para a História, vamos ver que momentos de tensão social sempre provocam mudanças na forma como a humanidade se porta e encara as transformações. Foi assim, por exemplo, com o sutiã. É o que diz a fotografa Júlia Lee: “O fato de que em 2020 ainda termos que debater o que é aceitável socialmente para as mulheres fazerem é totalmente absurdo e indignante”, explica.


“O fato de que em 2020 ainda termos que debater o que é aceitável socialmente para as mulheres fazerem é totalmente absurdo e indignante” - Júlia Lee, fotojornalista

No entanto, não são somente as mulheres assistem às mudanças pubianas. Homens, como este subscrito aqui, criado no berço do patriarcado, trataram de não raspar a pelugem pubiana. E também não falar sobre. Existe, e como, um tabu entre os homens. Se o uso de sutiã vem sendo repensado pelas feministas ao longo da História, e passaram a ser mais ainda no contexto da pandemia de coronavírus, a pelagem pubiana masculina precisa ser alvo de debate entre os homens. Vai ver, não sei, isso não rola em virtude da moral cristã que insiste em criar tabus e evitar discussões. Vamos falar de depilação masculina. Vamos?

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