Marcus Vinícius Beck
As mentiras da Guerra Fria
Atualizado: 30 de out. de 2020
O Quê Ler?
Romance ‘Tempos Ásperos’, do escritor peruano Mario Vargas Llosa, é um vibrante relato histórico sobre um golpe que transformou o destino da Guatemala e da América Latina nos anos 1950

O escritor Mario Vargas Llosa, autor de 'A Guerra do Fim do Mundo' - Foto: Félix Clay/ The Guardian/ Reprodução
É difícil falar na literatura latino-americana e não mencionar o nome do peruano Mario Vargas Llosa. Nobel da Literatura em 2010 e um dos maiores escritores do continente junto com Gabriel García Márquez, Vargas Llosa fez sucesso nos anos 1980 com “A Guerra do Fim do Mundo” (1981), obra na qual reconstitui a história da Guerra de Canudos eternizada por Euclides da Cunha no livro-reportagem “Os Sertões” (1902). Mesclando elementos ficcionais com personagens reais, o livro nasceu dos meses em que o romancista passou no sertão de Canudos, na Bahia, contando em detalhes como foi a empreitada de Antonio Conselheiro nos estertores do século 19.
Em 2006, também misturando ficção com realidade, Vargas Llosa lança a obra “Travessuras da Menina Má” (2006). O pano de fundo que permeia toda a narrativa é a Paris revolucionária dos anos 60, a Londres do amor livre da década seguinte, bem como a Tóquio dos mafiosos da década de 80, além da Madrid que assistia a retomada das liberdades civis e individuais na mesma década após anos sob a batuta do projeto sócio-político banhado à sangue imposto pelo ditador Francisco Franco, na década de 1930. O enredo, que gira em torno de um romance pouco convencional entre Ricardo Somocurcio e Lilly, protagonistas da obra, é dos melhores do escritor.
Como se o talento para adulterar a realidade fosse segredo, em “Tempos Ásperos” Vargas Llosa volta a beber nessa fonte. A história, é verdade, ajuda: uma fake news que transformou os rumos da história da América Latina na década de 1950. Qualquer semelhança com a vida, ou melhor, com a política como ela é, trata-se de mera coincidência – e um pouco de culpa do real. O escritor parte de uma mentira tão bem armada e publicizada que provocou a queda de um presidente democraticamente eleito, com a benção da CIA e de militares guatemaltecos - obviamente.
Resultado: um ditador chega ao poder, colocando em prática seu projeto de sociedade sustentado pela barbárie. Na cabeça de Vargas Llosa, um sujeito que jamais se furtou de esconder sua simpatia pelas ideias neoliberais, se Jacobo Árbenz não tivesse sido destituído do poder talvez o continente latino-americano não vivesse a polarização esquerda/direita e, com isso, a Revolução cubana, de Che Guevara e Fidel Castro, não aumentasse a rachadura ideológica durante a Guerra Fria. São suposições que municiariam a retórica do pacote ogro do Planalto e da Casa Branca.
Mesmo assim, em seu novo romance, o escritor peruano narra fatos marcantes na vida política da América Latina durante os anos mais tensos de Guerra Fria e estabelece um paralelo com a pós-verdade, evocando um de seus romances mais conhecidos, “A Festa do Bode”. Em "Tempos Ásperos", o escritor volta à luta que marcou a história latino-americana no século passado, como conflitos entre progressistas e ditadores. O Nobel monta ainda um panorama preciso da Guatemala. Quem pensava que o escritor havia perdido o pique, hein, se enganou.
Pouco conhecido
Vargas Llosa mostra um lado pouco conhecido da América Central, com seus efeitos e guerras civis que foram importados para outras regiões do continente, como se viu ao Sul nas décadas de 1960 e 1970. Por isso, as histórias contadas pelo peruano em “Tempos Ásperos” talvez sejam o prenúncio da escalada golpista deflagrada pelo Tio Sam, especialmente as que se desenrolaram no chamado Cone Sul durante os anos nos quais viradas de mesa institucionais geraram uma onda de regimes autoritários comandados por militares com a benção de magnatas endinheirados. É certeiro, o romancista: o futuro guatelmaco foi jogado nas mãos dos ianques.
Já nas primeiras páginas, Vargas Llosa relata que, embora sejam pouco lembradas na história, duas pessoas tiveram papel de protagonismo nos rumos que a Guatemala seguiu. Edward L. Bernays e Sam Zemurray, dois personagens que, nas palavras do escritor, “não poderia ser mais diferentes entre si, demonstraram todos seus temperamentos e suas vocações”. Marqueteiro - leia sujeito que ganhava para disseminar mentiras -, Bernays foi designado a construir uma imagem negativa de Jacobo Árbens, militar progressista eleito em 1951.
O então presidente estava longe de ser o adepto da ideologia da foice e do martelo com a qual foi agraciado. Árbens até admirava os Estados Unidos. No entanto, o marketing negativo do marqueteiro deu resultado e o militar foi expelido do poder – nada muito diferente do que se viu na última década. A trama conta ainda com homens da farda taxados como desertores que começaram a trabalhar com a CIA, exercendo papel central na confecção do golpe civil-militar gualtemo. Dono de capacidade intelectual sofrível, Zemurray de uma hora para outra passou a ser visto como um salvador da pátria. “Os dois formaram um bom time”, diz Vargas Llosa.
Bernays, continua o Nobel, ajudou a melhorar a imagem de sua companhia nos Estados Unidos, tornando-a bem vista para os altos círculos políticos de Washington. Diz o publicitário em seu livro “Propaganda” (1928): “A manipulação consciente e inteligente dos hábitos organizadores e das opiniões das massas é um elemento importante da sociedade democrática. Quem manipula esse mecanismo desconhecido da sociedade constituiu um governo invisível que é o verdadeiro poder no nosso país...”, teorizou o marqueteiro. É uma fórmula e tanto aos mentirosos de hoje.
Ficha Técnica
'Tempos Ásperos'
Autor: Mario Vargas Llosa
Editora: Alfaguara
Gênero: Romance histórico
Preço: R$ 59,90 (impresso) e R$ 39,90 (e-book)