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  • Foto do escritorMarcus Vinícius Beck

A pequena coreografia

Sede de Arte

Após sucesso de primeiro livro, escritora volta às livrarias com obra potente e comovente que retrata história de escritora


Aline apareceu no cenário literário com ‘O Peso do Pássaro Morto’, obra lançada em 2017 - Foto: Renato Parada/ Divulgação



A escritora Aline Bei, 33, comoveu críticos e leitores ao lançar o romance “O Peso do Pássaro Morto”, obra publicada em 2017 pela editora Nós. Não era para menos: no enredo, a romancista narra as intempéries de uma mulher dos 8 até 52 anos, numa existência fustigada pela opressão e cuja dor só se faz aumentar com o passar dos anos.


Aline colocou - com sua prosa poética e sensibilidade, a qual tão bem traduz em palavras - a literatura como instrumento para dar voz às mulheres. Assim foi com “O Pássaro”, assim é com “Pequena Coreografia do Adeus”, seu novo livro lançado pela Companhia das Letras: é um texto preocupado em chamar atenção aos detalhes do que é existir no patriarcado – que têm em nós, homens, o abusador por excelência.


Se no “Pássaro” não ficamos sabendo o nome da protagonista, em “Pequena” ela chama-se Júlia Terra. Filha de pais separados, a menina vê sua mãe não assimilar o abandono do marido ao mesmo tempo em que assiste o progenitor não suportar a ideia do matrimônio. Ou seja, a atmosfera que lhe cerca é sufocante, com brigas e violências.


Tudo, claro, legitimado pela falta de afeto a partir das “surras que eu levava” e que “eram as surras que minha mãe levou em looping”. Júlia chega à conclusão que o pai saiu de casa porque ali era “um lugar inóspito para você derramar o seu amor numa terra fértil”. Terra fértil, vírgula, estamos falando sobre as agruras traumáticas de uma personagem que lembra as eternizadas pela prosa transgressora de Clarice Lispector .


Óbvio, guardadas as devidas proporções. De fato, Aline possui um estilo que não se encaixa em definições pré-definidas sobre gêneros literários, nem em caducas teorias literárias, de gente que nunca escreveu uma linha sequer. Seu texto é cênico, poético e apaixonante e, ao lê-lo, você dificilmente vai querer dar por encerrada a tentativa de Júlia reconhecer sua individualidade e fugir dos traumas que lhe marcaram a infância.


Nessa busca por extravasar uma fase marcada por decepções, como se fosse um exercício psicanalítico junguiano de autoconhecimento, a protagonista recorre ao universo da literatura e depara-se com arquétipos que a ajudam a atravessar a tempestade de solidão. É neste momento da obra, por exemplo, que o título começa a fazer sentido, pois somos induzidos a analisar por que houve o movimento de afastamento de Júlia dos seus pais e como isso deixou marcas na subjetividade dela.


Ou, se preferir, como a protagonista se tornou aos poucos uma feminista. Tanto que, embora seja a grande razão para o silenciamento da subjetividade da filha, Vera é vista por Júlia com certa empatia: ela adquire consciência sobre o lado horripilante da vida numa sociedade patriarcal e certamente por isso olha para a mãe com algum carinho, e não apenas movida pela repulsa de uma pessoa autoritária.


Na maior parte da obra, luta pra tirar de si a sensação de sufocamento, que vai indo embora à medida em que escuta de terceiros incentivos e olhares afetuosos. Isso faz com que a personagem comece a se olhar de forma diferente e sentir o prazer da relação, como quando Maurício a levou com a boca “às alturas de um edifício antigo”.


Sim, a linguagem de Aline esbanja potência ao aliar a disposição visual na página da poesia com a tensão que vem de quem tem formação em teatro. Até a dor, a brutalidade, esses sentimentos que perpassam pelas páginas durante boa parte de “Pequena”, ganham na escrita da romancista uma força que a move em direção às profundezas da alma de quem lê, de quem se deixa levar pela poesia intrínseca à prosa.


Talvez isso por si só basta para definir a escritora como uma excelente romancista, seguramente a maior de sua geração. Mas não só: a condução afetuosa de Aline Bei, como se estivesse nos dando um abraço uma noite frita, enquanto acendemos o cigarro do desespero, é um dos atributos mais intensos do texto. E, bem, trata-se de uma característica que determina se uma escrita tem força e vida, ou se ela é frívola.


Não se pode fazer literatura sem vida, tampouco não se deve criá-la sem tesão – pois, como alertara o psicanalista e dramaturgo Roberto Freire, “sem tesão não há solução”. Digo tesão não no sentido sexual, e sim no sentido de depositar àquilo que se cria a energia que move e impulsiona a maior beleza do ser humano: o ato de criar, de conceber uma fortaleza do nosso espírito, com destemor, poesia e afeto – muito afeto.


Definitivamente, “Pequena Coreografia do Adeus” é uma obra que convida a olhar para uma sociedade que reproduz padrões comportamentais tóxicos. E, claro, isso tudo com a escrita poética de uma romancista que, em seu segundo livro, mostra-se um nome central na nova cena da literatura brasileira. Com Aline Bei, as palavras viram um instrumento que atenta aos horrores do patriarcado.



Autora: Aline Bei

Gênero: Romance

Editora: Companhia das Letras

Preço: R$ 49,90


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