Marcus Vinícius Beck
A provocação de Bressane
Cinema
Diretor instigante e criativo, Júlio Bressane é homenageado em mostra que exibe filmes-chaves de sua carreira. Ele é conhecido pelas suas escolhas estéticas pouco convencionais

Atriz Alessandra Negrini como Cleópatra, em cena do filme de mesmo nome - Foto: Reprodução
Em um português arcaico, a rainha egípcia Cleópatra (Alessandra Negrini) seduz o imperador romano Júlio César (Miguel Falabella) em uma das obras-primas do cinema brasileiro. A versão de Júlio Bressane de um signo perpetuado pelo imaginário ocidental ganhou uma conotação à brasileira, ao transportar às areias de Copacabana, como diz a própria personagem, “o ordenamento grego e a fantasia oriental”.
Os registros históricos ou biográficos sobre a rainha ficam restritos a algumas páginas escritas pelo ensaísta Plutarco, ainda no século 1. Sem deixar de lado a estética cinemanovista, Bressane constrói “Cleópatra” (2007) em torno do mito alimentado ao longo dos séculos, da antiguidade clássica a indústria hollywoodiana, do drama shakespeariano ao que nos é contado nas salas de aula pelos professores de História.
Boa parte da maestria desse filme fica por conta da atuação da talentosa Alessandra. Ela consegue trabalhar as incongruências da polaridade que a sua personagem provoca na relação com os romanos Júlio César e Marco Antônio (Bruno Garcia) – Oriente e Ocidente, autoritarismo e sedução, Eros e logos – que pipocam entre os dois universos culturais distintos, e pouco se misturam: são mundos que se entrelaçam apenas no amor carnal, na transa e no erotismo que faz da natureza algo sublime.
Mas Bressane tem anos de estrada, e essa não é a primeira vez que ele provoca sentimentos difusos no público. Em “Matou a Família e Foi ao Cinema” (1969), filme estrelado por Renata Sorrah e Márcia Rodrigues, ele apresentou para o público duas características centrais na maneira de bressaniana de fazer cinema: o amor e a violência, sem necessariamente ser nessa ordem ou ficar totalmente atrelado a realidade. Filho de general, o cineasta esquentou a cuca com o longa.
Realmente, retratar uma sequência de drama familiar sem uma razão à primeira vista coerente ou clara, sobreposta a tortura e assassinatos, rendeu-lhe o engavetamento do filme pelos militares e a produção nem chegou às salas. E houve uma ameaça de ir parar no xadrez, já que a deixa que a turma da caserna precisava para atribuir a Bressane ligação com o guerrilheiro Carlos Marighella estava posta. Sem escolha, exila-se em Londres, junto com o diretor Rogério Sganzerla e a atriz Helena Ignez.
Entre idas e vindas, em 2001 utiliza-se da ficção para retratar os dias de Friedrich Nietzsche durante sua estadia na Itália, naquele que é considerado o último sopro dele de criatividade espiritual e refinamento de ideias nos campos da arte e ciência, antes do silêncio literário definitivo. Em um exercício fílmico de refletir a filosofia nietzschiana, “Nietzsche em Turim” é, digamos, uma delinquência estética que chacoalha as estruturas do padrão - nada mais propício, em se tratando de Nietzsche e… Bressane.
Dois anos depois, o diretor brasileiro envereda pelos rumos do ensaísmo para rodar “Filme de Amor”, no qual a encenação é trabalhada por meio de pinturas clássicas e do mito das três raças, com um homem. O grupo passa a procurar um apartamento onde fosse ok beber, conversar e obter prazer, a fim de esquecer as estripulias do mundo.
Já em “A Erva do Rato” (2008), livre adaptado de um conto de Machado de Assis, o que há é uma certa escatologia, bem típica do cinema marginal dos anos 1970, em que um casal (Selton Mello e Alessandra Negrini) é obrigado a conviver um ambiente soturno após um acontecimento estranho em suas vidas. A particularidade desse filme é que ele possivelmente pode soar absurdo e nonsense, no sentido de nada fazer ter fundamento, o que não deve ser levado em consideração: estamos falando de Bressane.
Cinco anos depois, Bressane regressa ao mundo feminino, com “Educação Sentimental”, explorando um mito grego a partir de uma mulher mais velha que dá acolhimento a um adolescente, que vira seu pupilo. É Júlio Bressane mostrando a importância da figura da mulher na formação emocional de um homem.
Todos esses filmes agora poderão ser vistos na programação (acesse aqui: https://canaisglobo.globo.com/c/canal-brasil/) do Canal Brasil. A inquietação criativa e estética de Júlio Bressane tem muito a nos ensinar num Brasil delirante. Assistam-no. E, se eu posso dar uma dica, comecem por “Cleópatra”.