Lucas Wagner Nunes
A revolução cinematográfica
Cinema
Série de curtas-metragens transforma a sétima arte. Confira o artigo sobre a mostra Forensic Architecture, do 15º Cine BH

Trecho do curta “O Assassinato de Harith Augustus”. Foto: Forensic Architecture
Assistir aos trabalhos da Forensic Architecture me faz lembrar dos filmes do cineasta alemão Harun Farocki. Ele, "o mais conhecido cineasta desconhecido da Alemanha", dedicou uma carreira ao estudo ostensivo da imagem e seus desdobramentos sociopolíticos. Um enquadramento nunca é só um enquadramento, mas remonta as subjetividades enraizadas na historicidade daquele que enquadra. Logo, filmar não é um ato sem consequências e possui intrinsecamente um dado afetivo e político.
O coletivo Forensic Architecture (FA) pode ser considerado um descendente direto do trabalho daquele cineasta. Configurado como uma agência de pesquisa sediada na Universidade De Londres, a FA é composta por cineastas, jornalistas, arquitetos, desenvolvedores de software, cientistas, advogados e colaboradores eventuais de diversas áreas de pesquisa.
Logo se vê uma expansão daquilo que Farocki fazia, já que não se trata mais do olhar de um diretor de cinema sobre o mundo, mas uma teia de olhares e subjetividades que se voltam a um objetivo em comum: investigar os conflitos contemporâneos e como eles reportam abusos de direitos humanos enraizados historicamente. Não se trata da uma visão de autor, algo sempre questionável quando falamos em produção cinematográfica. É mais como um serviço prestado a comunidades e corpos periféricos ao promoverem uma análise microscópica da violência perpetuada contra populações ao longo do tempo, seja essa fração cronológica milissegundos ou décadas.
É valioso poder traçar os fundamentos da prática do FA em diálogo com o próprio Cinema. A tal da sétima arte é filha declarada do capitalismo industrial, fruto dos desenvolvimentos tecnológicos do fim do século XIX e início do XX. O cinematógrafo dos irmãos Lumiére permitia (ou assim imaginava-se) a captura da vida em seu desenrolar amplo no tempo e no espaço. A vida em tempo real. Logo essa arte se configurou como produtora de encantamento ou articuladora das ideias (particularmente no cinema soviético da década de 1920), mas também sua tecnologia possibilitou o desenvolvimento de ferramentas de vigilância que retificavam o poder estatal.
Hoje vivemos cercados por dispositivos produtores de imagens. O mundo se tornou uma extensa nuvem de dados digitais invisíveis, ao mesmo tempo em que nossos corpos são, mais do que nunca, observados e decompostos em padrões de comportamento que nos vigiam e facilitam o acesso de produtos a nós, e não mais de nós aos produtos. Acima de tudo, essa tecnologia, mais insidiosa do que os piores pesadelos de George Orwell, se ergue sobre raízes opressoras, quando não genuinamente fascistas. A máquina por si mesma não possui subjetividade, mas os detentores dos seus meios de uso e distribuição são sim aqueles que historicamente se mantiveram no poder.
O trabalho desenvolvido pela FA subverte a lógica do uso dessas ferramentas dentro de um olhar dirigido por uma subjetividade sensível aos direitos humanos e suas infrações. Dados de câmeras de vigilância, documentos contemporâneos e históricos, modelos 3D, sensoriamento remoto, análise de padrão, regressão cartográfica, geolocalização, etc, são cruzados de forma a produzir uma análise genética de crimes perpetrados pelo Estado contra corpos periféricos, expondo assim um olhar complexo sobre os eventos e suas múltiplas vicissitudes, produzindo um argumento político e social completamente baseado em dados. Um sonho concretizado do casamento do cinema com a ciência forense.
Peguemos a série de curtas metragens "O Assassinato de Harith Augustus". Decompondo o assassinato de um homem negro pela polícia em Chicago, em 14 de julho de 2018, a FA estuda o que a polícia defendeu como uma "decisão legítima tomada em uma fração de segundo".
Essa "fração de segundo" é fragmentada em diversas linhas de olhar pautados em diferentes escalas de tempo: os dias e as horas que se seguiram ao assassinato, a repercussão disso na comunidade, os minutos que envolveram o ato, os segundos, os milissegundos e, por fim, como todas essas ações desenvolvidas em cada faixa de tempo reportam às raízes históricas desenvolvidas ao longo dos anos na cidade e no país.
Para isso, utilizam registros das câmeras acopladas aos uniformes dos policias, câmeras de vigilâncias na rua e nos veículos, e desenvolvem um modelo 3D que mapeia o movimento daqueles corpos durante a ação de abordagem que durou segundos e resultou em morte. O fascinante é observar como traçam mapas virtuais a para construir um universo concreto de ações para reportar justamente à uma concretude impossível de ser alcançada pela mera observação. O resultado é uma experiência centrípeta que converge para dentro de si mesma até um ponto de conversão entre todos os outros pontos, e finaliza se configurando como um perfeito espelho.
A apropriação das imagens geradas por tecnologias de vigilância é subvertida no seu uso habitual para produzir um efeito crítico, elaborando uma tensão sutil entre linguagem e fato, que é ressaltada pelo uso de modelagem 3D a partir de softwares de código aberto (o que sinaliza um interesse pela democratização do acessos a essas ferramentas). Como diz Eyal Wiseman, arquiteto fundador da FA: "A estética investigativa desacelera o tempo e intensifica a sensibilidade ao espaço, à matéria e à imagem". Ao se proporem a ir tão fundo na investigação ao ponto de calcular o tempo de reação, em milissegundos, entre uma tomada de decisão de atirar de um policial e o ato em si, e então traçar uma linha de análise que liga essa ação às raízes históricas racistas de Chicago, os realizadores efetivam um genuíno registro genético daquele evento.
O estudo do racismo inscrito nas ações dos opressores se torna ainda mais crítico quando a FA direciona seu olhar para o campo de batalha mais insidioso de nossos tempos: o ar. Nos filmes "Estudos de Nuvem", "Gás Lacrimogêneo em Plaza de la Dignidade, Chile" e "Se o Ar Tóxico é um Monumento à Escravidão, Como o Derrubamos?", o coletivo investiga como a violência colonialista se mantém sobre o ar tóxico utilizado como matéria de opressão.
Ao tornar visível (por meio de modelagem 3D) os poluentes atmosféricos e lhes conferindo o peso de um registro audiovisual, calculando como a poluição, seja de forma direta (como bombas de gás lacrimogêneo) ou indireta (subprodutos de produção petroquímica), recaem sobre corpos periféricos que se posicionam contra a lógica pervasiva do sistema. À guisa de exemplo, o terceiro desses títulos trazidos nesse parágrafo realiza um estudo sobre a poluição produzida pelo corredor petroquímico às margens do rio Mississippi, e como esses gases tóxicos recaem especificamente sobre corpos negros descendentes de escravos que realizavam seus trabalhos forçados na região. Os espaços das antigas senzalas se converteram em comunidades de pessoas negras, sobre as quais os resíduos letais das fábricas recaem diariamente, transformando aquele território em um genuíno "corredor da morte", como o chamam seus habitantes.
Aos tornar visível os hidrocarbonetos invisíveis que poluem o ar, os realizadores concretizam sua visão de que as nuvens são eventos não só meteorológicos, mas políticos. Mais do que isso: em um mundo super-saturado de imagens que ressaltam o lúdico das produções audiovisuais, é fascinante observar o nível de densidade de registro que conseguem alcançar a partir de uma reprodução em 3D de um evento de consequências letais. Dentro disso tudo, é ainda fascinante a preocupação que a FA mantém com as possibilidades líricas do uso do audiovisual, como o drone que faz um travelling ao redor de uma árvore solitária ao fim de "Se o Ar Tóxico É um Monumento à Escravidão, Como o Derrubamos?", quando então a essa imagem é sobreposta a reprodução digital de uma nuvem de gás, ou ainda como o clique insistente do seletor automático que rastreia os lançamentos de bomba de gás em "Gás Lacrimogêneo em Plaza de la Dignidade, Chile" se transforma em um "tic-tac" macabro que sublinha o trágico da situação.
Preocupados em decompor o espaço e o tempo até seu código genético, o coletivo rompe com a máxima de um "cinema" preocupado mais em gerar perguntas do que respostas. Aqui, a análise de dados é suficiente para que sejam dadas respostas efetivas e urgentes sobre as condições em que vivemos, e o estado de coisas atual do mundo, que exige uma revolução. Não mais o estudo filosófico e contemplativo de Harun Farocki, mas uma análise de imagens que existem com um objetivo específico: convocar à ação. Ao basta.