JM
A revolução do sexo
Atualizado: 22 de abr. de 2020
Comportamento
Entenda como a literatura pós-grande moléstia de 1918-1919 transformou a sexualidade e moldou o ser humano

Foto: Getty Imagens
Marcus Vinícius Beck
No período entre guerras, o escritor norte-americano Henry Miller estava sem um centavo no bolso e experimentava Paris com intensidade. Sob o cenário inspirador da capital francesa, Miller publicou, em 1934, o romance Trópico de Câncer, obra que ficara proibida nos países de língua inglesa até os anos de 1960, quando os padrões comportamentais foram sacudidos pela descaralhante literatura beatnik e pelo som revoltado de Beatles e Stones. O livro chegou a ser definido como pornográfico, assim como seu sucessor Trópico de Capricórnio, mas intelectuais da época saudaram o texto como genial.
Narrado em primeira pessoa, Trópico de Câncer discorre sobre liberdade, desespero, opressão, boêmia e falta de grana. O romance se estende pelos bulevares parisienses, pensões baratas, de quinta categoria, cafés vagabundos, artistas e intelectuais sem emprego e prostitutas decadentes. Sem preocupação com a estrutura de uma narrativa convencional, o ritmo do texto de Miller é rápido, ansioso, típico de quem quer chegar ao cerne das coisas. A obra, com sua intensidade singular sobre a vertigem sócio-política do período entre guerras, tornou-se um dos testemunhos mais honestos de uma geração.
Da esquerda à direita: Anais Nin, Henry Miller e Oscar Wilde - Fotos: Pinterest/ Reprodução
Como Miller estava duro na época e vendia seu almoço para comprar vinho, Trópico de Câncer foi editado na França e contou com o empurrão financeiro da escritora francesa Anais Nin, com quem o americano vivia um romance libertário. No entanto, a obra não calhou de despertar a draconiana censura imposta pelos códigos morais do Velhíssimo Mundo. O mesmo se desenrolara na Inglaterra onde ainda vigoravam premissas vitorianas que, vejam só!, levaram ao xilindró e à morte o romancista irlandês Oscar Wilde, o irreverente autor do clássico O Retrato de Dorian Gray (1890). Miller, porém, viveria para ver sua obra aclamada.
De uma hora para outra, numa postura sem pé, nem cabeça e desprovida de coerência, livros de autores que foram achincalhados pela censura imperial, como o irlandês James Joyce, britânico Lawrence Durrel, americano Ernest Hemingway e britânico Cyril Connolly, puderam ser lançados no Reino Unido. Mas, no caso de Miller, não foi de uma hora para a outra que alguém decidiu publicar Trópico de Câncer: o ostracismo durara, ao todo, 30 anos. O poeta Lawrence Ferlinghetti, proprietário da livraria City Lights, em São Francisco, onde Allen Ginsberg declamara os versos de Uivo, topou lançar o maluco relato do velho safado.
Da esquerda à direita: quadro 'A Origem do Mundo', na Lawrence Ferlinghtti na City Lights Books e livraria - Fotos: Pinterest/ Reprodução
Ferlinghetti libertara a literatura das amarras da intolerância e da ignorância. Vociferavam-se argumentos naquele tempo que não seriam coisas de outro mundo na boca de certos pastores tresloucados ou de uma conhecida ministra que, com seu habitual pensamento truncado e medieval, sugeriu que os jovens abandonassem o sexo durante a última festa da carne. Mas, no acender das luzes dos turbulentos anos de 1960, a justiça dos States insistia na ética protestante que condenara a personagem do francês Gustave Flaubert, Emma Bovary, e menosprezara o famoso quadro da genitália do conterrâneo Coubert.
Década da revolução
Na década de 1960 a sociedade assistiu a transformações profundas nos costumes, na música, no cinema, no teatro, na literatura... Eram tempos do rock dos Beatles, dos Stones, da lisergia de Jefferson Airplane, dos versos de Allen Ginsberg e Bob Dylan, da minissaia Mary Quant e de tantas outras conquistas cruciais aos direitos humanos e ao comportamento, incluindo o afrouxamento na legislação da homossexualidade e do aborto. Antes disso, vejam só!, diziam que o ato de masturbar-se provocaria doença degenerativa da medula, a ereção era um inchaço doentio do corpo humano, o orgasmo das mulheres era... nojento.
A pílula anticoncepcional foi criada nos Estados Unidos em agosto de 1960. Estava assentado o caminho para o movimento que revolucionara os costumes em 1968. Após a descoberta do fármaco, as relações sexuais não seriam apenas destinadas para reproduzir, e sim para satisfazer os sentimentos e instintos básicos da existência. O tesão, assim que a década de 60 despontou na linha do tempo da História, não era algo doentio. As mulheres passaram a ter mais controle sobre seus próprios corpos. E na música, o cantor francês Serge Gainsbourg lançava um dueto orgástico com a beldade inglesa Jane Birkin, “Je T'aime,...Moi Non Plus”.
Da esquerda à direita: Wilhelm Reich, Rolling Stones e Serge Gainsbourg - Fotos: Pinterest/ Reprodução
Um dos nomes que influenciaram as transformações sexuais dos anos de 1960, o psicanalista alemão Wilhelm Reich defendia uma “revolução sexual” (título, inclusive, de seu livro mais famoso, de 1936), que seria paralela à revolução política, e associava a agressividade do ser humano à repressão sexual imposta aos jovens e adolescentes. Reich graduou-se em medicina, em 1922, pela Faculdade de Viena, mas foi expulso da docência. Para o pensador, era necessário a livre expressão dos sentimentos sexuais e emocionais sobre o relacionamento amoroso, influenciando os beats e a rebeldia da “my generation” sessentista.
No ano passado, o papa Bento 16 disse que os escândalos sexuais pelas quais a igreja católica passou eram frutos de uma decadência geral da moralidade provocada pela revolução de 1960. Em ensaio, o pontífice afirmou que a transformações no campo dos costumes banalizou a pedofilia e a pornografia. Mesmo com todos os avanços registrados na década de 60, ainda nota-se sem muito esforço discursos reacionários e sugestões de ideias medievais para discutir sexualidade. Sim, passados seis décadas dos loucos anos de contracultura, a música dos Stones e a literatura de Allen Ginsberg seguem revolucionárias.
Saiba mais sobre a transformação na sexualidade
‘Trópico de Câncer’ – Henry Miller
“Trópico de Câncer” discorre sobre liberdade, desespero, opressão, boêmia e falta de grana. O romance se estende pelos bulevares parisienses, pensões baratas, de quinta categoria, cafés vagabundos, artistas e intelectuais sem emprego e prostitutas decadentes.
‘1968 – Eles Só Queriam Mudar O Mundo’ – Ernesto Souto e Regina Zappa
A obra retrata didaticamente as transformações e tensas políticas que ocorreram em cada mês do ano de 1968. Ao longo do livro, o leitor se depara com informações sobre o cinema novo, o teatro de resistência, tropicália, rock, literatura, poesia, filosofia, etc.
1968 – O Ano Que Não Terminou – Zuenir Ventura
O livro-reportagem narra os fatos que marcaram o conturbado ano de 1968 no Brasil e no mundo. Seu autor é o jornalista Zuenir Ventura, participante e estudioso do referido ano, bem como de suas consequências para a realidade contemporânea.