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  • Foto do escritorMarcus Vinícius Beck

A revolução pelo filme

Atualizado: 21 de fev. de 2021

Cinema

Mostra 125 Anos de Cinema continua e streaming disponibiliza produções que marcaram a nouvelle vague, movimento manifesto-cinematográfico dos anos 1960


Anne Wiazemsky e Jean- Pierre Léaud em cena de ‘A Chinesa’, clássico político de Godard - Foto: Reprodução


A nouvelle vague, ou nova onda, em tradução literal, surgiu quando o diretor François Truffaut foi ovacionado no Festival de Cannes por causa de “Os Incompreendidos”. O ano era 1959, e no filme Truffaut retratou um adolescente revoltado contra os mecanismos de repressão da sociedade francesa, antecipando aquilo que viria a ser nos anos 1960 as contestações dos jovens nos campos da política, estética e comportamento: era o início da chamada modernidade pós-industrial e a onda da vez era a imaginação tomar o poder.


Para recordar um dos movimentos mais revolucionários da história do cinema, a Mostra 125 Anos de Cinema, do Telecine Play, continua com seleções de títulos que marcaram época. Nesta semana serão os 19 filmes que simbolizaram a efervescência artística, intelectual e política dos anos 1960 a partir da inventividade de mentes cansadas da velha fórmula do Impressionismo Francês, do Neorrealismo Italiano e de Hollywood. “Os Incompreendidos", “Jules Et Jim”, “Beijos Roubados”, “Os Amantes'', “Cléo das 5 às 7”, “A Chinesa” e “Uma Mulher Casada” fazem parte da programação.


Em 1960, quem nascera em meio aos bombardeios entre as tropas aliadas e do eixo na Segunda Guerra Mundial havia atingido os vinte e poucos anos e começava a questionar os dogmas de seus pais no sexo, na vida e no trabalho: será que era preciso levar uma vida chata para sobreviver? Será que o capitalismo não nos reservaria nada que não fosse uma rotina pouco excitante e muito monótona? Essas eram as dúvidas mais presentes na cabeça da nova geração.


Esquerdista convicto, Jean-Luc Godard inverteu os papéis no início da década de 1960 e mostrara um ladrão de carros anarquista que mata o policial que lhe perseguia. Ele encontra uma amiga norte-americana e ela vira sua amante. Os dois flanam pelas ruas de Paris, filosofando sobre a existência e confabulando delírios retóricos. “Acossado” é um feito e tanto para alguém que deixara há pouco a rotina de crítico cinematográfico nas páginas da bíblia cinéfila Cahiers Du Cinema. Na mesma toada estavam François Truffaut e Claude Chabrol.


Os três conseguiram um feito e tanto ao apresentar para o mundo que era possível filmar sem experiência profissional e o narcisismo, uma garantia de autenticidade artística. Desprovida da perfeição hollywoodiana, os filmes primavam por uma linguagem fluída, não raro prazerosa, que focava no psicológico dos personagens: Antoine Doinel, uma espécie de alter-ego de Truffaut, exemplifica essa necessidade, com traços de sua personalidade reprimida evidenciadas na tela, em filmes como "Beijos Roubados" (1968) e "O Amor Aos 20 Anos" (1966).


Para Godard, uma história precisa ter começo, meio e fim. “Mas não necessariamente nessa ordem”, sentenciou o revolucionário, em entrevistas. A não utilização de cores, tampouco closes ou supercloses, nem cortes bruscos, é o que faz da nouvelle vague um movimento tão fascinante e tão transgressor: nesses detalhes é que se encontra a primazia estética que, se pode fazê-la parecer simples, mostra-se muito mais do que isso, quase uma preocupação ensaística de produzir cinema. Aliado, é óbvio, às transformações sociais do período.



Godard pode até ser o mais politizado, vivendo na utopia de produzir um cinema marxista, em parceria com a classe trabalhadora e em sintonia com a luta de classes, o que lhe creditou como o mais original dos cineastas da nouvelle vague, mas Truffaut não fica muito atrás dele: seus filmes são poemas em forma de cinema, retratam o amor, sentimento essencial para a alma humana, para que a vida faça algum sentido numa sociedade que nos aniquila. A cena na qual Doinel conhece, em “Os Incompreendidos”, o mar é a antítese disso: nela o personagem se liberta de uma repressão familiar que encontrou um aliado na escola, com professores reacionários.


Também uma das fundadoras da nouvelle vague, apesar de ser esquecida por boa parte da crítica e dos estudiosos, Agnès Varda subverteu os paradigmas da estética cinematográfica vigente e ajudou a consolidar essa revolução no cinema. “Cleo das 5 às 7” é a prova da força cinematográfica de Varda: o longa mostra a cantora Cléo, que faz um exame para descobrir se está com câncer ou não. O resultado fica pronto em duas horas, e então ela sai pelas ruas de Paris, com o acaso a levando a topar com Antoine, jovem militar que está prestes a partir. Obra-prima.


As questões filosóficas e sociológicas da nouvelle vague, cujo término é atribuído ao rompimento entre Godard e Truffaut após o lançamento de “A Chinesa” (1968), conseguiu modificar o olhar do espectador paras as transformações sociais da década de 1960. E libertaram, com câmeras portáteis e películas adaptadas à luz natural, o cinema dos estúdios, oferecendo as ruas de Paris como espetáculo e o único cenário possível para um cinema vivo e fluído.


Termo inventado pelo jornalista Françoise Giroud nas páginas do jornal francês L'Express no início dos anos 1960, nouvelle vague, na década de 2020, tornou-se sinônimo de transgressão e da necessidade em romper caducas formas e fórmulas, além de se eternizar como documento histórico de uma época na qual ser realista era querer o impossível, era querer mudar o mundo e era querer vislumbrar a justiça e a igualdade entre os homens.


De Anna Karina, Jean-Pierre Léaud, Corinne Marchand e Anne Wiazemsky, temos apenas boas recordações e agradecimentos por forjar nosso compromisso com o amor, a revolução, a política e arte. Se Godard, Truffaut e companhia não derrubaram o capitalismo, ao menos retrataram a utopia que alimenta e dá sentido à vida. Obrigado, amigos.


Mostra 125 Anos de Cinema

Onde: Telecine Play

Para assinar: R$ 40


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