JM
A viagem lisérgica da arte
Doutorado
Historiador Júlio Delmanto, em “História Social do LSD no Brasil”, analisa os detalhes do primeiro processo judicial por tráfico de dietilamida do ácido lisérgico no Brasil

Ilustração do jornalista Hunter S. Thompson, expoente da contracultura americana - Foto: Reprodução
Marcus Vinícius Beck
Roberto Piva, poeta da marginalidade literária, recorda-se de sua primeira odisseia lisérgica: “Fomos em dois carros, junto com outras pessoas que também tomaram a droga. Lá, eu entrei no meio do mato e repentinamente, quando bateu o ácido, olhei para o sol e vi como se fosse uma grande tangerina gotejando amor para o universo”. Transcrito na obra “História Social do LSD no Brasil”, já disponível para compra, o trecho narra as experiências da chamada geração beatnik paulistana com os efeitos dietilamida do ácido lisérgico. “Então tirei a roupa. Fiquei totalmente nu, e caminhei por todo aquele mato sem me machucar em nenhum espinho”, relata Piva.
Em suas páginas, “História Social do LSD no Brasil” reserva um espaço especial aos escritores marginais, assim como a grupos de vanguarda que mergulharam na psicodelia quando o LSD chegara ao Brasil. Bem pensado, Júlio Delmanto. Seu livro, escrito originalmente como tese de doutorado orientada pelo historiador Henrique Carneiro, da Universidade de São Paulo, a USP, chega num momento necessário. Seja pelo anseio repaginado da onda lisérgica a partir de jovens usuários, seja pelo fracasso iminente da guerra às drogas ou pela derrocada do capitalismo no cenário pós-pandemia, faz-se imprescindível reconstruir a trajetória do ácido.
Então, é preciso – com o perdão da redundância – começar do começo... Contexto sócio-político? Ditadura civil e militar. Nos anos 1960, quando o Brasil experimentava à sua maneira a Guerra Fria, a degustação de LSD misturou-se ao modus operandi dos gorilas fardados, que começaram perseguir e prender os primeiros adeptos da substância. “História Social do LSD” começa com um enredo estruturado a partir de requintes policialescos. Jovem de classe média, Osmar Ludovico zarpou do Brasil antes de o golpe de 1964 ser deflagrado, mudando-se para a Europa e aproximando-se das ideias que compunham a então nascente contracultura.
“Superlotação, tortura. Lá, Osmar conheceu Barry John Holohan, preso pelo mesmo motivo: um australiano de criação católica rígida, sócio de um cassino em Londres e que posteriormente se descreveu como alguém que buscava mais aventuras do que dinheiro ao entrar para o tráfico" - trecho do livro 'História Social do LSD no Brasil'
Ao botar o “pé na estrada”, como diz Delmanto na obra, Ludovico mudou-se para o Velho Mundo e aproximou-se do comércio de haxixe para se sustentar. E com a grana que entrava em seu bolso, foi seguindo em frente, mas nunca deixou de experimentar, por assim dizer, um modo alternativo de vida. Como estava cada vez mais envolvido nesse mercado, virou entreposto de um traficante libanês, e passou a ir buscar direto na fonte, em Beirute, para vender na Dinamarca, país onde vivia. Preso em 1968 com 13 quilos de haxixe escondidos no painel do carro, ele permaneceu por um ano enclausurado, ora em prisão comum, ora em manicômio judicial.
“Superlotação, tortura. Lá, Osmar conheceu Barry John Holohan, preso pelo mesmo motivo: um australiano de criação católica rígida, sócio de um cassino em Londres e que posteriormente se descreveu como alguém que buscava mais aventuras do que dinheiro ao entrar para o tráfico. Quando soltos, Barry foi para a Califórnia, Osmar voltou para São Paulo, tendo um plano em vista: vender LSD no Brasil para comprar cocaína, que seria vendida na Europa”, relata o historiador, que é graduado em jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero, mestre e doutor pela USP. Juntos, vieram ao Brasil e conheceram “agitadores culturais” da incipiente cena hippie paulistana.
Consistência documental
Daí aos doidões da tropicália, foi um pulo: Gal Costa, em seu disco homônimo de 1969, foi influenciada pelo movimento psicodélico norte-americano. Júlio Delmanto reconstrói como o LSD moldou a vanguarda artística do período, e joga luz sobre uma dúvida antiga dos estudiosos do assunto: como eram a cobertura dos jornais da época? Sim, o historiador debruça-se em edições antigas de O Estado de São Paulo, Folha de S. Paulo, Correio da Manhã, Realidade, Jornal do Brasil, mas destaca que as coberturas, em sua maioria, eram feitas sob um viés sensacionalista, eventualmente grotesco. Quase bizarro, enfim.
Bom, até o pessoal do Teatro Oficina, de José Celso Martinez Corrêa, para ensaiar uma peça, fizeram a cabeça com ácido. E por aqui houve ainda dois nomes fundamentais à divulgação das ideias da contracultura: o jornalista Luiz Carlos Maciel, autor da coluna Underground no jornal O Pasquim, e o dramaturgo Antonio Bivar, figura ligada ao movimento hippie e identificado com a geração do desbunde. “Se os hippies americanos beberam na fonte da Geração Beat”, diz Delmanto, “no Brasil o antecessor direto da contracultura foi o movimento tropicalista”. Maciel e Bivar, já nos anos 70, portanto, foram nomes importantes no pós-tropicalismo.
Cena do filme 'Medo e Delírio em Las Vegas' com a música 'Somebody To Love', da banda Jefferson Airplane
Para entender o impacto do LSD e compreender como ele abasteceu a arte sessentista e setentista, Delmanto passeia também por obras-chaves da contracultura, como o livro-reportagem “O Teste do Ácido do Refresco Elétrico”, do jornalista Tom Wolfe. A partir da apuração jornalística lisérgica de Wolfe, o historiador investiga a relevância do escritor Ken Kesey para a cultura do ácido. Além disso, o pesquisador volta à gestação estética da chamada Geração Beat – ou anarquistas místicos, como define o poeta e ensaísta Claudio Willer. Allen Ginsberg, William Burroughs (este autor da bíblia “Junky”) e Jack Kerouac eram notórios defensores da alteração da percepção da realidade.
De Audax Huxley (autor do ensaio “A Experiência Psicodélica") ao psicólogo Timothy Leary, muita gente boa era entusiasta da viagem lisérgica promovida pelo LSD. Mas, se a História tem a finalidade de compreender o passado para jogar luz ao futuro, Júlio Delmanto prova que a proibição do LSD estruturou as redes (varejistas e atacadistas) do tráfico e alimentou uma guerra que jorrou sangue em todo o mundo, e de forma equivocada. Convém, então, perguntar: não seria o caso de mudar essa política de combate às drogas? Não seriam as drogas caso de saúde pública, e não de segurança? Enquanto nada é feito, vamos insistindo num método vicioso e arbitrário.
Serviço
‘História social do LSD no Brasil’
Autor: Júlio Delmanto
Gênero: não-ficção
Editora: Elefante
Preço: R$ 69,90
Tese de doutorado disponível no banco da USP
