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  • Gabriella Campos

Protocolo da vida

Afrescos Da Alma

Foto: Gabriella Campos


Às 5h40, na madrugada de terça feira, Carlos ouve o alarme tocar. Ele abre um dos olhos e leva à mão até o despertador para colocar fim naquele som aflitivo, espalmando o objeto de modo que este caiu ao chão.


Carlos leva as mãos ao rosto, esfrega os olhos e respira fundo, como quem buscasse vigor para enfrentar o martírio. Um silêncio dramático paira sobre o quarto escuro, este cheira a desconsolo. Agora são 5h42.


O moço, gerente de estoque da loja Tecidos Village, que fica na rua 30, onde trabalha há 5 anos, se volta o olhar para a janela do quarto. Pelo único lugar de onde escorre um fiasco de luz, busca observar o zumbido da cidade, nada, nem um latido.


Carlos lança as pernas para fora da cama, com ajuda dos cotovelos levanta o tronco, de domínio lento, metódico. Senta na beira da cama.


O homem se levanta, enfia os pés de modo desordenado nas sandálias, sai arrastando-as até que estas se ajeitam, de forma quase que independente. Ele se encaminha em direção ao banheiro, agora diante do espelho encara a si mesmo.


De início, Carlos observa o que vê, seu físico de 38 anos, jovem, aparentemente. Nota que há algo de errado. Busca então visualizar por trás, por de trás dos olhos, onde se esconde todas as outras coisas guardadas na alma, as que tiram o sono, que aparecem nos sonhos. O Jovem se esquiva dos próprios pensamentos - Deixa disso! - Pensou, são 5h47 da manhã.


Agora, abre a torneira, encharca as mãos com água e lança ao rosto - se pudesse, lavaria até a alma- outra vez, Carlos fora atormentando pelos próprios pensamentos. Apanhou a toalha e secou o rosto, com certa danação.


5h49

Carlos Moreira de Paiva, seu nome estampado em seu crachá, encaminha-se até o cabideiro, pega seu uniforme de mangas cumpridas, cor bege, letras vermelhas escritas e se enroupa. Por fim coloca os sapatos pretos, bonitos, de gente fina, ganhou no natal.


Na cozinha, 5h56, prepara um café na máquina, enquanto este fica pronto, trata-se de buscar sua caneta favorita, a caneca do afago, boa amiga, com asa colada e o esmalte já desgastado. É o melhor objeto, mas este não está onde costuma deixar.



Se vira para o lado e lembra que está suja, Carlos então trata de lavar o copo, bebe o café enquanto matuta, pensamentos soltos, não chega a lugar algum. Termina o último gole e torna a deixá-la na pia, a caneca, como estava de início. São 6h08


Carlos não tem bichos para alimentar, passa o dia na rua, mal poderia lhes dar carinho. O homem pega sua velha pasta, celular, carteira e a chave da titan vermelha que comprara no ano passado. Apaga as luzes e sai devagar, olhar queixoso de quem deixara o leito.


Desce as escadas, mora no 2 andar, sobe na moto -Deus! Que cabeça- esbraveja para si. Esqueceu o capacete. O homem torna a usar a escada, dessa vez passos mais largos, entra em casa, vai direito à mesa de canto, pega o capacete, desce as escadas, agora sim. Carlos segue para o trabalho. 6h12


Caminhando, correndo, sentado, punhos serrados, contra o tempo, de cara para o vento, sacode junto os pensamentos. Carlos segue teu caminho, 58km/h, mais uma quadra e logo estará na grande Village.


Chegado ao local, fim da partida, início do jogo, jogo de cintura, de conversas, acertos, sorriso de canto, cumprimentos, entra e sai. Tudo começa desde aquele primeiro bom dia, no relógio 6h26.


Um dia inteiro, palavras trocadas, ideias postas na mesa, desacordos, gestos amistosos. Carlos sorriu diversas vezes, conversou e desconversou, tomou café com a Rosa e o Álvaro, fecharam as portas, se despediram, de volta pra casa.


A noitinha, Carlos prepara comida, lava a louça do jantar e a caneca preferida. A tv ligada é só para companhia, tudo ouve, mas a essa altura, nada absorve. Carlos se deleita na cama, apanha o despertar do chão, ajeita para 5h40 e em seguida o apoia sobre o criado. Carlos obteve êxito em seguir mais um protocolo da vida, mas algo estava errado, e Carlos não tinha tempo para pensar.

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