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  • Gabriella Campos

Muita coisa havia para fazer, mas Clemência decidiu ir ser feliz

Afrescos da Alma

Foto: Reprodução

Quando paramos para pensar na vida, nada faz tanto sentido. Odeio livros de autoajuda, peço desculpas se isso ofende alguém. Mas, falando de Clemência, percebo que o buraco é bem mais em baixo. Mulher que sabe que para alcançar a felicidade verdadeira, não se acoberta por um falso riso de canto, demonstrações escandalosas, eufóricas, repletas de desespero e medo. Clemência, és uma mulher forte e sábia. Forte pois, haja físico para suportar a rotina, sábia por saber que nada se faz de modo fácil e completo. Buscou no cotidiano sua alegria maior, pois era assim que viveria o resto de sua vida



2011, setembro, domingo.


A chuva lavava as roupas no varal, o vento as secava. Um ciclo que perdurou por algumas horas. Na sala a tv ligada, passava um filme que falava de amor, barulhava baixo e a antena pouco funcionava.


No quarto havia toalha molhada sobre a cama, algumas roupas sortidas no lençol bagunçado, com partes soltas, fora do colchão. Sandálias jogadas ao chão e a penteadeira escancarada.


Do chuveiro gotejava água, um balde a aparava. Toc, toc a cada segundo. O gato dormia na sala, quieto, num sossego encabulável.


“... às vezes parece mentira, quando ouço sua voz, nos rádios tocam as músicas do tempo em que eu e você éramos nós...” cantarolava. Aos 42 anos, Maria Clemência de Lima do Rosário sentiu a dor no peito se esvair feito a chuva evaporando do chão batido do Nordeste. Mulher que tanto amou, tanto lhe doou, para a vida de amarguras, em busca do que parecia ser a única saída. É para que? Se perguntava todas as manhãs, antes de partir para a labuta.


“... ainda que saiba da verdade escondida, por de trás da cortina da vida de mentiras...” continuava. Fã da jovem guarda da época de menina, Clemência revivia cada momento de alegria quando escutava com os ouvidos do coração sua própria essência de menina.


Quando a vida se passa, em ano depois, nota-se a fúria do coração judiado, esquecido, moldado pela vontade de sobrevivência, esquecendo alí o gosto da alegria em ser quem és. Quem era Clemência, a final?


Nascida em Parnamirim, no Nordeste, aos 14 sonhava em ser passista, -Bobagem!- lhe dizia o marido. Teve 5 filhos com o homem que havia casado, Antônio era de longe o melhor ou mediano homem que morava na região. Aos 22, este se entregou de vez ao alcoolismo e a mulher teve de cuidar de tudo sozinha.


“...vida que vem e que vai, me leva para longe de tudo, onde o maior espetáculo seja eu embalando no mundo...” sussurrou ao lado do rádio velho. O que a mantém ali é a força, a vontade de viver, viver por algum motivo desconhecido.


Domingo, as 11h45, Clemência olhou de longe os raios que ensolaravam o quintal espaçoso, logo viria a chover, mais tarde. Lembrou de quando era menina, fruto da música, das canções de Eusébio e dona Sônia, o sanfoneiro e a moça do bar, a cantora.


Filha de músicos, alma livre, lembrou-se que ainda estava viva, que os sonhos ainda hão de acontecer, mesmo que a vida não fora nem um pouco generosa, cabia a ela fazer algo por si mesma. Clemência se aprontou toda e foi para o frevo, onde se apresentavam de todos os cantos, as mais lindas atrações musicais.


Deixou o filme rodando, tomou um banho, escolheu o melhor vestido, alimentou o gato, as roupas no varal mal lhe preocupavam. Lá se foi Clemência, cheia de alma e vida, aos 42 anos, ser livre para sentir o gosto da vida.


“...vida que vem e que vai, me leva para longe de tudo, onde o maior espetáculo seja eu embalando no mundo...”

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