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Antonin Artaud: a rebelião experimental e a busca pelo corpo-sem-órgãos

Povokeativa

Muito se fala em nossa cultura a respeito da figura do gênio incompreendido.

Antonin Artaud. Foto: reprodução


Quando pensamos a respeito, surgem alguns nomes – uns mais consensuais que outros – tais como: Marquês de Sade, Friedrich Hölderlin, Charlotte Bronté, Vincent Van Gogh, Emily Dicksinon, Richard Wagner, Friedrich Nietzsche, Edgar Allan Poe, Charles Baudelaire, Qorpo Santo, Arthur Rimbaud, Conde de Lautréamont, Arthur Bispo do Rosário


(Peraí, tirando Charlotte Bronté e Emily Dickinson, só tem homens nessa lista? Pois é, caros leitores, além de inadequados boa parte desses conceitos próprios ao romantismo caducaram como anacrônicos e mesmo o recorte adotado por boa parte dos estudiosos posteriores continuavam a perpetuar esse olhar machista e patriarcal altamente excludente e questionável, mas que sorte a nossa que tudo isso está mudando… – mas esse não é nosso tema de hoje.)

Poderíamos seguir e seria difícil chegar a delinear todos e todas que encarnam o tipo.


Note-se que minha listagem – claro, bem arbitrária como toda lista é – começou com um nome proveniente do século XVIII. A explicação, para não complicar as coisas e nem apelar para muita erudição, é que o tal conceito de “gênio” emergiu no contexto dos movimentos dos diversos romantismos originados na Europa por aquele período. A figura do gênio, no entanto, sempre apareceu em espaço-tempos, áreas e contextos diversos.


Isso posto desejo aqui, nesta comunicação um tanto peculiar, tratar somente de um deles. Uma dessas pessoas cuja vida encarnou com tamanha verdade, densidade e dor, até onde se limita momentaneamente o meu saber, o tipo do gênio incompreendido, romântico, dilacerado pela existência e criando seus experimentos a partir desse intolerável sofrimento, foi o poeta, ator, roteirista, encenador, pensador e diretor de teatro francês Antonin Artaud.


Não pretendo aqui trazer detalhes biográficos exaustivos ou mesmo muito precisos sobre sua vida.

Permito-me mais um tipo de exercício de digressão afetiva – e peço desculpas pelas imprecisões nele contidas, pois encontro-me impossibilitado de acessar a minha biblioteca com obras tanto de Artaud quanto outras que lhe fazem referência: as citações apresentadas no texto serão muita mais paráfrases criativas do que extrações objetivas pinçadas das próprias obras de referência – a partir de elementos que consigo ler muito claramente e que, ao longo de anos, venho reunindo a respeito desse ser humano e criador cuja contundência, aspereza e loucura me levou a lugares do ser que, antes, achava improvável existirem.


O motivo de escrever essas linhas ébrias é que na data passada data de 4 de junho, há 73 anos atrás, falecia Antonin Artaud.


O poeta morreu abandonado e louco num quarto alugado com a ajuda de amigos e admiradores – dentre eles o amigo e ex-parceiro de surrealismo André Breton e o filósofo existencialista Jean-Paul Sartre – no hospício do bairro de Ivry-sur-Seine, nos arredores de Paris.

Falei “louco”? Não, Artaud não era louco! Duvido da loucura de Artaud tanto quanto coloco em dúvidas a “sanidade” deste mundo no qual estamos inseridos agora e daquele no qual Artaud existiu e se dilacerou para criar suas obras tão originais.

Artaud dedicou-se profundamente a fazer de sua Recusa uma obra de arte que fosse inteiramente tomada por sua própria existência. Como dissera o filósofo Albert Camus em algum lugar em sua obra “O Homem Revoltado”, transformou sua própria existência individual num ato de rebelião. Uma rebelião ontológica, cósmica e experimental.


Vindo de uma família burguesa de boas condições, recusou-a, assim como recusou-se a ter uma vida sacrificada a manter um emprego comum, recusou-se a construir, por sua vez, uma família, e ainda que fosse “romântico” em algum aspecto a respeito de suas paixões em vida também renegou o romantismo e fracassou no amor. Dentro desse pacote todo recusou imoderadamente a Razão, o Ocidente, a Civilização, o Cristianismo (embora não as religiões, mas as estruturas oficializadas que a transformam em ideologia de controle espiritual e social – Artaud era um místico de cepa trangressiva), a Moral, os Costumes, os Governos, o Capital, o Trabalho e até mesmo a poesia e a “Arte” (um dos capítulos de um de seus textos “teóricos” sobre o teatro, O Teatro e Seu Duplo, chama-se justamente “Acabar com a Obra-Primas”).

Essa última - a ruptura artística - inclusive foi uma das mais dolorosas dentre tantas que ocorreram em sua vida. Artaud fez parte do grupo do surrealismo em Paris durante a década de 20 junto a André Breton, Philipe Soupault, Paul Eluard, Max Ernst e tantos outros. No entanto, com a adesão do surrealismo ao Partido Comunista Francês, Artaud foi expulso do movimento e rompeu com Breton e o grupo. O materialismo histórico marxista era decididamente cego para a magia e os conflitos mais essenciais identificados à própria vida que Artaud tinha sempre em vista em sua elaboração e criação artística.


Embora durante sua vida reclamasse para si o título de “poeta” – e certamente ele o era – Artaud não elaborou propriamente uma poética como usualmente fazem os “poetas” e “escritores”, organizada e pensada para o formato-livro que leva ao ritual declamatório do sarau, busca a aceitação bajulatória da crítica especializada e se alimenta da comercialização a um público sensível determinado.


Pelo contrário, Artaud expressava em muitas de suas cartas – um dos suportes em que mais se expressou com tamanho arrojo experimental e autocrítica – as crises, dificuldades e batalhas contra as limitações da linguagem e do pensamento, chegando ao ponto em que, extrapolando os meios artísticos disponíveis em seu tempo, achou necessário encarnar e viver seus próprios poemas em épicas batalhas por mais vida, mais energia, em irromper e tentar extinguir os dualismos metafísicos que diminuíam a chama da potência viva.


Assim como construiu – ou esboçou, como também costumava dizer, deixando atrás de si os rastros e detritos de suas “falhas” em escrever, elaborar seu pensamento e sua voz – uma obra experimental, Antonin Artaud, sobretudo, VIVEU uma vida experimental. (A fórmula tão usada pelo poeta Roberto Piva – “só acredito em poeta experimental que leva uma vida experimental” – certamente faz alusão a Artaud, embora não somente a ele.) Artaud, que era hipocondríaco, sofria de condições médicas terríveis e usava e abusava de substâncias narcóticas para se automedicar, tornando-se logo viciado em láudano e ópio. Suas crises de abstinência geralmente vinham acompanhadas com mudanças súbitas de humor e dores excruciantes que geralmente se expressavam com ardor e violência. Muitas vezes quando já alucinando durante as crises, sem dinheiro, tentava inaportunadamente a ajuda financeira de alguns amigos para aplacar as torturas com drogas, era geralmente escorraçado e renegado após brigas exaustivas, ficando completamente sozinho e em estado vulnerável. O “cenário perfeito” para se construir uma “má reputação”: Artaud logo foi marginalizado como causador de encrencas, um típico viciado turbulento, “mala”, transformado em “pária” e “maldito”.


Cansado da cultura branca européia, da higiene étnica cristã, da hipocrisia moral das instituições de sua sociedade e de seu tempo, Artaud foi atrás da magia em peregrinação pela Irlanda e depois viajou ao México, onde passou um período entre a tribo do Taramuharas, participou de rituais de dança do peyote e levou lá suas surras espirituais. Um de seus textos mais belos e enigmáticos aparece nesse período, Viagem No País Dos Taramuharas, onde os rituais e as experiências extrassensoriais são relatadas, como o Rito do Sol Negro e outras magníficas elucubrações que o xamanismo e os enteógenos lhe apresentaram, como a busca da fecalidade: “Ali onde cheira a merda, cheira a ser”. Esse último tema também volta e meia aparece em outras obras como em sua performance final Para Acabar de vez com o Juízo de Deus. Entre os seus contemporâneos sentia-se cercado, invadido, constantemente vigiado, ameaçado, desafiado a se enquadrar numa mediocridade que detestava de seu próprio âmago. Lá fora, em suas viagens, não apenas viu o mundo, mas teve uma experiência sagrada dos espaços e das formas civilizatórias alternativas contrapostas ao eurocentrismo baseado no cartesianismo, na categoria central do “sujeito”, na identidade posta e elaborada pela cultura, pela territorialidade.


Observação: tornou-se um terrível lugar comum construir uma imagem de Artaud como permanentemente enervado, alterado, amargurado, bilioso e destemperado. Muitas vezes quando se fala a respeito dele a primeira imagem que vem à cabeça é a de um homem com os nervos inflados saltando do pescoço e das têmporas, gesticulando com força e magnetismo marcante, quase como um “exibido” incapaz de ficar cinco minutos quieto e contemplativo num canto. Como se a constante corrente elétrica de seus pensamentos exigissem tradução múscular imediata em ação ao inflamar seus átomos. Como se o homem fosse a qualquer momento atear fogo em si mesmo ou no mundo. Nada mais injusto com a complexidade humana de alguém, principalmente da estirpe de Antonin Artaud, do que os grosseiros traços da caricatura escarrada e claramente enviesada.


Claro que ele não era isso, e a estereotipização e a mitificação, o congelamento dessas imagens que tomam lugar da verdade do indivíduo e se tornam uma referência aprisionadora, colocam em maus lençóis e condenam a uma precariedade emocional tal tipo de pessoa. É por isso que Artaud, muitas vezes, evocava certo terror, certo medo mesmo, entre seus contemporâneos. Imagine então tentar aproximações amorosas, engatar relacionamentos, quando se é marcado desse modo como ele foi.


A escritora franco-americana Anaïs Nïn que foi testemunha, conheceu Artaud e tornou-se amiga íntima dele (e pela qual ele, como poderia até meio que ser previsível em se tratando de um homem já abandonado e excluído pela sociedade por várias questões e tabus; um cara genial, sensível e terrivelmente solitário, se apaixonou em determinado momento) em alguns relatos fala sobre como sentia medo e até mesmo, em certos momentos, pena dele. Nïn o assistiu enquanto ministrava uma de suas palestras mais reconhecidas nas quais não apenas “falou” sobre, mas “expôs literalmente” a idéia, encarnou, encenou, viveu, sofreu e morreu a “Peste” sobre a qual sua palestra buscava tratar. Anaïs Nïn ficou horrorizada e chocada de início com o exasperante contorcionismo daquela performance, mas logo depois da palestra, quando finalmente teve a oportunidade de conhecer o homem Antonin – e ao ver as reações zombeteiras e hostis do público em relação a ele durante a apresentação – se afeiçoou e até amou – sim, ela também o amou, mas não da forma que queria Artaud – aquela criatura enigmática capaz de romper qualquer convenção para atingir o núcleo radiante da vida e trazer e traduzir esse saber por meio de seu próprio corpo.


Ao saírem da palestra, Nïn e Artaud tomaram um táxi para ir beber em algum café e Artaud, ainda atônito, excitado e machucado pela reação dos contemporâneos, reclamava a ela: “Eles não conseguem ver? Não conseguem ver que estão mortos e que estou tentando trazê-los de volta à vida?” E subitamente, numa mudança drástica de frequência como que numa possessão, encarnou Heliogábalo, o Anarquista Coroado (que naquele momento ele pesquisava para escrever seu livro sobre o imperador romano adolescente) com o corpo pra fora da janela do carro enquanto berrava a plenos pulmões: “Sou Heliogábalo e Paris é minha Roma, meu Império!


Em seu Teatro da Crueldade – apresentado em obras como o Teatro e seu Duplo, uma proposta cênico-filosófica que Artaud buscou e elaborou, mas nunca chegou a concretizar (algumas de suas fórmulas-imagens diziam que ele queria que a experiência do teatro tivesse a força de galvanização do corpo entorpecido pela espetacularização social, o sopro vulcânico capaz de despertá-lo da dormência de uma cultura abstrata e psicológica, que tivesse o impacto e ressonância do terrorismo ou de uma blitz de polícia) – Artaud queria que o corpo, os gestos, os movimentos e os elementos cênicos entrassem numa dança viva com os símbolos, os espíritos, e o texto e a voz fossem operados apenas como um elemento a mais nessa composição, e não como centro de gravidade fundador do drama e elemento ápice da hierarquia do jogo cênico.


A revolta artaudiana explode não apenas em seus textos, mas expressa-se sobretudo por meio deles. E é incrível que se você pegar suas obras escritas – embora tripudiasse a escrita e os escritores (“Toda escrita é porcaria”, escreveu no Pesa-Nervos) Artaud produziu, e muito, durante seus anos de vida e infortúnios: sua obra completa lançada pela Gallimard consta com 28 volumes– não é raro o leitor se sobressaltar diante de alguma passagem provocadora, explosiva, capaz de dinamitar conceitos e sensibilidades. (Para o leitor ter noção, ainda hoje – quase 20 anos depois que travei o primeiro contato com textos seus – enquanto o leio continuo soltando interjeições como “Caralho!“, “Putaquepariu!“, “Eita preula!” e etc. É impressionante como a obra não apenas parece não envelhecer, como também permanece rejuvenescendo quem a lê. Ao menos é o que acontece comigo.)

Seus cadernos – principalmente, mas não só, aqueles dos anos no hospital psiquiátrico de Rodez onde passou alguns anos de internamento sofrendo torturas e tratamentos de eletrochoque que “quebraram o seu ser” e desestruturam sua autopercepção, seu pensamento, sua consciência – eram constantemente invadidos por rabiscos, desenhos, autorretratos constantemente reelaborados e costumavam literalmente extravazar as bordas das páginas e evadir das folhas… Antonin Artaud não queria, não reconhecia e não respeitava nenhum limite, nenhuma fronteira.

Acima de tudo, a obra de Artaud é um convite à autoexploração e constitui uma espécie de ética da experimentação radical em todas as esferas da vida, dos signos, das culturas, dos afetos, da linguagem. Ela busca antes uma experiência sensorial radical que rasga o corpo e o desincreve dos roteiros, códigos e coordenadas pré-determinadas no sistema de representação elaborado pelo cérebro, pela razão, pelo “conhecimento moderno”, científico, lógico.


Sua intensidade – entre a euforia mais exorbitante e a melancolia que o sufocava constantemente – não demarcava apenas um “estilo” literário, uma “assinatura artística”, mas um modo de compreender e de estar-no-mundo. Embora nunca em completa paz com ele, o que tornava Artaud, para muitos, alguém um tanto “insuportável”. Por isso muitos boicotes e certo silêncio, em determinados momentos, foi construído como um muro ao seu redor. “É louco!”, “drogado”, “erotômano”, “exibicionista”, “pervertido” – é possível imaginar como que as pessoas o tinham “recepcionado” naqueles tempos.


Quando ele passou os últimos nove anos de sua vida recluso, entre a solidão e os maus tratos em hospícios, a “boa sociedade” francesa respirou, enfim, aliviada! Quem é que poderia lidar com aquele sujeito impertinente e ingrato com uma boca tão suja, livre e acusadora?


Perseguido e invisibilizado em sua reclusão imposta, Artaud nunca deixou de produzir e duas de suas últimas obras expressam bem a sua condição e como ele nunca desistiu, mesmo sofrendo o que sofreu, de batalhar contra todo tipo de injustiça, maldade e hipocrisia.


O ano de 1948 lhe deu a gestação de um dos livros mais lindos – e tristes – que já li. Falo de Van Gogh: o Suicidado da Sociedade, em que não trata apenas do pintor holandês, mas faz um verdadeiro tratado sobre a necessária rebelião do gênio incompreendido, sobre a Recusa em se tornar máquina, número, estatística e em se submeter ao jogo sujo da sociedade perversa. O “louco”, no entender de Artaud, seria aquele ser único que assim foi estigmatizado pelos outros – pela sociedade burguesa, cristã, capitalista, branca, bem entendido, embora preconceitos parecidos também emergissem continuamente nas ditas sociedades comunistas – por ter a coragem de enunciar a Verdade quando todos os demais a dissimulam e encenam suas vidas como se ela não existisse.

Como ele diz a verdade, aquela que envergonha os poderosos e coloca em dúvida a estrutura do poder com suas injustiças de base, as dinâmicas e as funções sociais que segregam os indivíduos em aparências disformes e provocam estúpidas disputas e mal-estar que funda um falso sentido que ajuda a manter as coisas em “ordem” – e que são propagadas pelos agentes da sociedade como sendo o “assim” das coisas que “nunca mudam”, por ditames acima dos próprios homens que organizam e reproduzem a tal sociedade e os tais valores -, seria mister desqualificá-la e jogá-la na sombra desemponderando assim o homem, a mulher, o ser que a enuncia para que todos possam ouvi-la e, conhecendo-a, possam despertar das ilusões arquitetadas para a submissão generalizada. Não se tarda a percebermos o perigo político de coisas do gênero. Imagine só se as pessoas “despertassem” e se negassem a cumprir as ordens e mandamentos determinados pelos chefes e senhores da sociedade!

Ao punir-se com a estigmatização de “desarrazoado” e “socialmente perigoso” tal ser corajoso, cria-se e coloca-se sobre o mesmo tal aura de maldição em torno que destrói seus laços comunitários e a isola de seus pares. Desse modo, o exemplo torna-se negativo e gera-se um coletivismo baseado no medo e no conformismo, desencoraja-se outros indivíduos ao despertar que levaria, de outro modo, a uma indomável transformação. Esse também é mais ou menos o tom adotado sua última performance, a transmissão que foi batizada de Para acabar de vez com o Juízo de Deus, um título escatológico e profético tal qual a abordagem poético-existencial contida na vida-obra artaudiana. Nela, como em outros textos do poeta, acompanhamos denúncias, polêmicas, provocações e até mutações do próprio Artaud. Um texto rigorosamente delirante e que vira tudo do avesso do avesso do avesso, onde Artaud não poupa nada e nem ninguém, muito menos o próprio Antonin Artaud. É aí onde surge pela primeira vez a expressão “Corpo-Sem-Órgãos” que viria a ser utilizada conceitualmente nos Mil Platôs pelos filósofo francês Gilles Deleuze e analista Félix Guattari, fundadores da esquizoanálise. “Você está louco, Senhor Artaud?”, pergunta-se à dada altura de sua apresentação. Essa gravação foi feita por Artaud e amigos em fins de 1947 para um programa de rádio. A transmissão foi proibida pelo diretor da emissora, provocando uma polêmica que repercutiu na imprensa. A gravação foi a última manifestação de Artaud em vida. “Lá onde outros propõem suas obras, eu não pretendo fazer outra coisa senão mostrar meu espírito. A vida é de queimar as questões. Eu não concebo nenhuma obra separada da vida. Eu não gosto da criação separada. Eu não concebo tampouco o espírito como separado de si próprio. Cada uma de minhas obras, cada um dos planos de mim mesmo, cada uma das florações glaciais de minha alma interior baba sobre mim“, escreveu em seu Umbigo dos Limbos, um texto que tal como suas cartas e seus livros tem o tom incisivo e rasgado que poderia aproximá-lo de um manifesto.


O filósofo e historiador francês Michel Foucault, autor da História da Loucura e da História da Sexualidade, ao discutir a questão da estética da existência certamente, dentre tantos outros como Nietzsche e Van Gogh, teria o rebelde e experimentador radical Antonin Artaud como um dos pilares que ilustram perfeitamente seu conceito.

Artaud, que sobreviveu aos anos loucos da aventura surrealista, que interpretou o monge apaixonado por Joana D’Arc no belíssimo épico de Carl Theodor Dryer de 1928, A paixão de Joana d’Arc, que escreveu o roteiro de O Monge e o Clérigo dirigido por Germaine Dulac, que elaborou uma visão terrível, experimental e dionisíaca de um Teatro da Crueldade que não só influenciou dramaturgos, atores e diretores no teatro (aqui no Brasil, Zé Celso Martinez e o Teatro Oficina beberam dessa fonte inesgotável) como conseguiu, para além disso, ressonar e marcar influência em filmes como o Satyricon de Federico Fellini, na abordagem experimental do Living Theater, em vanguardas posteriores como o letrismo de Isidore Isou e a Internacional Situacionista (particularmente no poeta belga Raoul Vaneigem), no cinema poético-transgressor de Leos Carax, na contracultura musical e comportamental, na poesia performática e foi referência obrigatória do xamã-rockstar da poesia Jim Morrison à frente do The Doors, deixou esse mundo abandonado e esgotado enquanto perdia a batalha para um câncer retal que o atormentava durante anos.


Enquanto sua luz se extinguia naquele quarto abafado e escuro, sua glória voltaria a cintilar em outros tempos e lugares.


No final das contas, ele parece mesmo ter vencido ao ter se recusado a desaparecer por completo enquanto referência intersticial aliciadora que ressoará ainda durante muito tempo, enquanto o conflito cósmico do ser ousar ainda optar por mais vida, por maiores e mais potentes experiências. O criador do Teatro da Crueldade continuará nos assombrando para nos lembrar de que a batalha mais crucial é aquela em que afirmamos a potência da vida acima dos ditames de todas as instâncias nas quais a morte deseja nos enquadrar e mutilar, nos sujeitar e abusar. A buscar pelo esplendor enigmático da vitalidade em detrimento dos engodos do tédio, da morte e do próprio desespero.


Sua rebelião continuará a causar o incômodo que causou em seu tempo, uma vez que continuamos nos confrontando – em uma paralisia evolutiva na qual as forças conservadoras têm, sobremaneira, muito influenciado – com perigos e problemas ainda bastante repetitivos e semelhantes.

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