Lee Aguiar
Aos poetas de plantão
Doce Viagem

Poeta Ikaro MaxX em Santa Teresa, em 17.09.2020. Foto: J.Lee
Meu caro poeta,
Por aqui os dias estão fluindo na intensidade dos ciclos que se fecham & abrem incessantemente. Já não sei mais quem serei daqui pra lá, assim como já não reconheço a mulher que fui há minutos atrás. Sou múltipla, um mar revolto habita no âmago da existência que chamo de minha.
Me surpreendo com a capacidade de transbordar e transfigurar os sentidos & medos. Lhe escrevo pois ao construir palavras, sentido, semânticas etcss eu construo um mundo inteiro, sólido. Real. Me apego amarguradamente ao vício de sentir. Não quero prender o espírito que corre pelas ruas desnudas, necessito das vísceras de uma gota qualquer que me transborda, não quero pedir desculpas por emocionar-me.
Tuas sílabas me soam como água na boca de quem come sorvete em dia de verão. Tenho saliva, suor, cheiro, pelos e cabelos, e acima de tudo: ainda vejo poesia nos gestos orgânicos.
Quero continuar a conhecer pessoas que me encaram nos olhos, desnudos & sem medo, quiçá muito ao contrário da maioria: com tesão no abismo que me cerca. Sinto profundo apreço pelas vivências de tal coragem por tanto ttteeemmmpoooo, ao ponto de me perder em minha própria lucidez do que é se deixar invadir por alguém. Você me rasga ao avesso.
As agonias tomaram as vísceras mentais ao raiar do sol. Entretanto, como uma boa bruxa, eu reencontrei o abismo que me habita nas cartas e oráculos.
As revelações vieram como ventos turbolosos de verdade & realidade. Me embriago das percepções daquilo que só é. Será que um dia encararei um vácuo de silêncio?
Quero lhe contar como eu vivi e o que aconteceu comigo. Vi uma cena ontem digna de cartas inteiras, por ousadia poética te farei sentir somente o gosto amargo de não ter presenciado tal fato. Uma xará fez aniversário, o ambiente me deixava ranzinza - em tempos de miséria, meu ode a burguesia só se incendia a cada segundo que se transborda - e por um momento me desconcentrei até mesmo das vísceras da raiva.
E como em um relance no acaso, Júlia sobe em cima da mesa e performa Hilda Hilst. A poesia bradava os corpos pasteurizados pela abundância ignorante, e os corpos se contaminavam em labaredas gritantes.
É uma personagem curiosa, um dia te apresento.