Marcus Vinícius Beck
As lutas de Chiquinha Gonzaga
Música
Uma das artistas mais importantes do chorinho e primeira autora de uma marcha carnavalesca, artista é homenageada em mostra

Chiquinha Gonzaga (1847-1935). Foto: Acervo Itaú/Reprodução
Chiquinha Gonzaga marcou a cultura brasileira ao ser a primeira maestrina chorona a criar uma marcha carnavalesca. Pioneira, destemida e corajosa, Gonzaga enfrentou barreiras em tudo o que se propôs a fazer na vida: afinal, o Brasil do Império, no final do século 19, não era um lugar tão convidativo assim para mulheres que ousassem fazer música num Rio de Janeiro que lhes designava papéis de meras coadjuvantes.
A instrumentista tem suas lutas contadas na “Ocupação Chiquinha Gonzaga”, mostra dedicada à célebre artista que está aberta no Itaú Cultural, em visitação presencial ou online. Ela encampou o pensamento abolicionista, favorável ao direito das mulheres e pró-direitos autorais. Algumas dessas batalhas são narradas poeticamente por cinco artistas que interpretam textos da dramaturga Maria Shu.
O primeiro, por Dona Jacira, mãe do cantor Emicida, começa no Brasil escravocrata de 1847. Filha de um militar branco e uma mulher negra, seu pai enfrentou a própria família aristocrata e se casou com a mãe de Gonzaga, assim que ela nasceu. Matrimoniou-se ainda jovem, aos 16 anos, teve três filhos e, aos 25, deixou o marido – o esposo fora escolhido pelo progenitor, prática comum naquele tempo. Na época não existia divórcio, e uma mulher sem marido não era muito bem-vista pelo patriarcado.
É importante lembrar, contudo, que Francisca Edwiges Neves Gonzaga veio ao mundo num Brasil Imperial que havia acabado de emancipar a maioridade de Dom Pedro II para que ele assumisse o comando da então colônia de Portugal. Sua avó era escrava e Gonzaga foi embranquecida pela indústria cultural, escancarando o racismo estrutural ao longo dos anos. Esse é o mito da democracia racial brasileira.
“Nesta sociedade patriarcal, a mulher foi feita apenas para procriar. O homem não se sente responsável pelos cuidados com os filhos. As mulheres cuidam dos filhos e os homens cuidam de seus negócios. Se as mulheres trabalharem fora, os homens ajudarão com os filhos? Mulher que trabalha fora é mundana, eles dizem. Respeito as mundanas, mas eu sou uma pianeira! Eu quero trabalhar”, diz a cantora Jup do Bairro, na pele de Chiquinha, após se separar do marido que queria lhe afastar da música.
Vai batuque, vem batuque: Gonzaga descobre, em Berlim, nos primeiros anos do século 20, que suas músicas estão sendo vendidas sem sua autorização. Então ela passa a encabeçar uma campanha de direito autoral de compositores e autores de teatro, e é uma das fundadoras em 1917 da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, a primeira no país a recolher direitos: ela ousou abrir a porta e correr pela rua, pulando carnaval.
Autora de repertório abrangente, com mais de 77 peças de teatro e 2 mil músicas, artistas como Pixinguinha chegaram a interpretar suas composições. Na televisão, foi retratada na minissérie “Chiquinha Gonzaga”, de Jayme Monjardim, na Globo, em 1999. Mas ela, embora negra, foi vivida pela atriz Gabriela Duarte.
A biógrafa Edinha Diniz, que começou a pesquisar a vida da musicista ainda nos anos 1970, mencionou em “Chiquinha Gonzaga: Uma História de Vida” que a artista era morena, porém não se aprofundou sobre suas origens.
“Toda vez que contam a minha história, terminam com a música “Abre Alas”, porque eu me despedi desse mundo no dia 28 de fevereiro de 1935, às vésperas do Carnaval. Mas eu sou mais que “Abre Alas”. Eu sou maior que um amor de carnaval. Nasci pra jogar confete e serpentina de janeiro a janeiro. A vida é como um piano. As teclas brancas representam a paz e as pretas, a luta”, diz Fabiana Cozza, como Gonzaga. “Pousei minhas duas mãos sobre o piano para criar música popular brasileira.”
“Ó Abre-Alas” (1899) foi criada para embalar o cordão Rosa de Ouro. Foi a primeira composição para o carnaval do Rio de Janeiro, que criou um novo estilo musical, batizado de marcha-rancho, e se consolidou nas décadas seguintes como patrimônio cultural do Rio. Definitivamente, Chiquinha Gonzaga desempenhou um papel crucial ao trazer para as salas de concerto a sinfonia das ruas.
Feminista e pioneira, Gonzaga morreu em 28 de fevereiro de 1935, em plena República Brasileira, e dois dias depois aconteceu o primeiro concurso das escolas de samba. Vale acompanhar na Ocupação o entrelaçamento dos momentos mais importantes da carreira da artista com os acontecimentos que marcara o fim do Império.
Com Chiquinha, a vida é como um piano: teclas brancas e negras se convergem na afinação do som para dar sentido à vida. Mesmo vivendo uma vida sofrida, com a perda de filhos e divórcios que lhe tornaram malquista, o instrumento de Chiquinha Gonzaga quase nunca se calou. E hoje, ele ressoa.
Ocupação Chiquinha Gonzaga
Quando: de 24 a 25 de março
Onde: Itaú Cultural
É possível agendar visitação online, com ou sem curador em sympla.com.br/agendamentoic