JM
As raízes das caças às bruxas
O que ler?
'Mulheres e a Caça às Bruxas' disserta sobre as repressões às mulheres nos séculos 16 e 17 com recorte para os dias atuais

Filosofa Silvia Federeci durante sessão de autógrafos, em São Paulo - Foto: Reprodução/ Carta Capital
Marcus Vinícius Beck
O patriarcado é um monstro mortífero. Ao mesmo tempo, sua verve que ceifa vidas femininas é uma espécie de paraíso comportamental para a macharada. “Pode-se objetar, contudo, que prova temos de uma relação entre a mulher que foi queimada viva ou que surgiu sua forquilha para o coletor de impostos e a lógica de um sistema que, em fase inicial, dificilmente teria obtido unificação da consciência, quanto mais um plano orquestrado”, escreve a filósofa Silvia Federici, em “Mulheres e a Caça às Bruxas”, que está disponível para compra nas melhores casas do ramo, inclusive no site da Boitempo. Nem a retórica opressora capitalista é singular.
Ainda assim, a pensadora ítalo-americana, embora seja engajada na luta para resguardar o direito à vida das mulheres, vê-se obrigada a revisitar as raízes históricas das letais perseguições que, vira e mexe, colocam o sexo feminino na condição de bruxas malignas, feiticeiras responsáveis por rituais de magia negra e sequestradoras impiedosas de criancinhas indefesas. Discursos antiquados, práticas idem. Federici estrutura sua análise a partir do processo de cerceamento e privação comunais, examinando o ambiente e as motivações que produziram as primeiras acusações de bruxarias na Europa, entre os séculos 16 a 17.
Nascida em Parma, na Itália, no ano de 1942, Silvia Federici cresceu num país defenestrado pela política desastrosa da ditadura totalitária de Benito Mussolini. Seus pais, militantes antifascistas, colocavam no rádio o hino da resistência italiana “Bella Chiao”, canção endossada pelos Partizans como alento para combater a tirania do canastrão. Federeci crescera num mundo dividido onde ouvia histórias terríveis contadas pelos pais. Dentro de casa, todavia, acompanhava o ressentimento da mãe por ter o trabalho que desempenhava com carinho não reconhecido. A progenitora vivia enclausurada num cotidiano repressor.

Pensadora é uma das intelectuais mais renomadas do momento - Foto: Gabi Di Bella/ The Intercept
Do imbróglio machista no seio do poder familiar, Federici enveredou para a vida acadêmica. Graduou-se em filosofia na Universidade de Bolonha, fez mestrado e lecionou nos States durante a Guerra do Vietnã. Deu aulas ainda na África e escreveu sobre mulheres lavradoras, pedreiras, parteiras, curandeiras que tinham autonomia. Em sua obra, a pensadora relaciona as acusações de bruxaria com a ordem econômica, o controle a sexualidade feminina e a representação negativa das mulheres na linguagem. A partir do debate proposto em “Mulheres e a Caça às Bruxas”, a autora escancara como a punição se repete na atualidade.
Por isso, analisa a filósofa, a inquisição sequestrou o poder delas, lá trás, ainda na transição da Idade Média para a Moderna. Para combater os resquícios repressores de outrora, Federeci propõe a compreensão de suas causas imeditadas, conhecimento de suas origens e desvendamento de que maneira a opressão histórica soma-se, na atualidade, com as novas e perversas formas de exploração. Ao dissertar sobre os assuntos abordados em “Calibã e a Bruxa”, seu livro anterior, a filósofa traça paralelo entre as perseguições sofridas pelas mulheres no passado com a violência sistêmica que amordaçam o corpo feminino.
“Por que as caças às bruxas foram dirigidas principalmente contra as mulheres? Como se explica que, ao longo de três séculos, milhares de mulheres se tornaram a personificação do “inimigo no meio de nós” e do mal absoluto?”, sentencia. “O estudo da caça às bruxas nos leva a reavaliar a crença arraigada de que, em certo momento, o desenvolvimento do capitalismo foi portador do progresso social – uma crença que, no passado, levou muitas pessoas “revolucionárias a lamentarem a ausência de uma “autentica acumulação capitalista” em grande parte do antigo mundo colonial”, disserta a filósofa e ativista feminista.

Capa da obra - Foto: Divulgação/ Boitempo
A necropolítica no caldo da sociedade patriarcal no seio da violência sádica que acomete mulher com discursos medievais torna a “Mulheres e a Caça às Bruxas” uma obra necessária. Como poucas autoras não negras, Silvia assimila a questão racial como temática central no debate sobre a perseguição às mulheres livres numa sociedade que ainda não passou a borracha na História de perseguição. Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro assassinada por sicários paramilitares, mostra que o debate sobre a autonomia feminina se faz necessário, necessário, não: faz-se fundamental para que não incorramos em erros do passado.
É o caso de indagar: não será este Brasil, comandado por malucos viúvas dos tempos da farda verde-oliva, uma tenebrosa aberração?
Ficha técnica
‘Mulheres e a Caça às Bruxas'
Autora: Silvia Federici
Gênero: Ensaio
Editora: Boitempo
Preço: R$ 37,00