Marcus Vinícius Beck
Banda em fuga
Música
Ex-Beatle lança disco que confeccionou durante isolamento social, tocando todos os instrumentos e gravando todas as faixas

Paul McCartney durante gravação de ‘McCartney III’ - Foto: Divulgação
A música certa alimenta nossa combalida alma com boas doses de esperança, e talvez esse ano tão maluco não tenha outra maneira de começar senão com um belo trabalho do ex-beatle Paul McCartney produzido durante seus dias de isolamento social.
Há 50 anos o quarteto inglês chegava ao fim e Paul se trancou no estúdio para gravar e tocar todos os instrumentos de “McCartney”: ele, enfim, conseguiu sua sonhada desacoplagem dos Beatles. Dez anos depois, após fazer sucesso com a banda Wings, mais uma vez o músico se isolou para produzir “McCartney II”. Agora, obrigado a se trancar em casa por causa da pandemia de coronavírus, o músico lança outro álbum.
Embora não tenha grandes surpresas, estamos falando de um disco de Paul, e é reconfortante vê-lo brincando de fazer música: com mais de cinco décadas na estrada fonográfica, o músico nos mostra que é possível ter alegria numa época de desalento.
Thanks, Paul. O disco é bom, bastante inspirador e tem os múltiplos Pauls possíveis: o cara do violão, o do piano, o das baladas ligeiramente apaixonadas e dos rockões de fazer balançar o esqueleto até daqueles reconhecidamente incompetentes na arte de dançar. “Long Tailed Winter Bird”, faixa que abre o álbum, traz o Paul folk, do dedilhado carinhoso no braço do instrumento, ao estilo Bob Dylan na primeira metade dos anos 1960. É totalmente instrumental, lindamente calma.
Quem vai deixar de ouvir “McCartney III” depois disso? “Find My Way”, a segunda do disco, conta com um riff de guitarra que remete aos anos de Wings, em 1970. Em seguida, o Paul das cordas de aço, do violão, com o qual resolve um imbróglio criativo em poucos acordes, mas sem menosprezar as profundidades da alma.
Alma, aliás, é o que lhe guia em “Women and Wives”: aqui ele pede para homens e mães escutarem seus ensinamentos. “Teach your children and then/ make´em pass it to others/ some of them may borrow”, algo como, “ensine seus filhos/ faça com que eles passem a outros/ alguns deles podem pedir emprestado”. O amor muda o mundo.
Já “Lavatory Lil”, musicalmente, tem um peso mais evidente, trazendo um solo de guitarra de dedos, a personificação de uma mulher que Paul não curte e que, de acordo com o que ele disse em entrevistas, não irá revelar nunca quem é. Talvez por tocar todos os instrumentos a execução harmônica do disco não seja sensacional, porém seria uma terrível injustiça aos meros mortais o ex-beatle ser até um músico virtuoso.
De todos os instrumentos guerreiramente tocados por Paul, e me parece que o mundo veio abaixo quando ele disse que havia tocados todos eles no disco de 1980, o Paul em sua versão baixista soa como um cara meio de saco cheio de tirar da cartola linhas de baixo fodonas. Basta você colocar um pouco mais a fundo o fone no ouvido, ou prestar atenção na harmonia das faixas, para perceber que os grooves se tornaram mais diretos, retos, simples e sem frescura, pá-pum, é rock and roll, porra!
É assim, uma a uma: “Deep Down”, “Slidin”, “Winter Bird...” “Winter Comes”, “Find My Way”, “Deep Deep Feeling” e “Long Tailed Bird”. E tem um aspecto que precisa ser levado em consideração ao falar sobre “McCartney III”: é um trabalho desprovido de qualquer espécie de pretensão de conceber um discaço, daqueles de fazer chorar os fãs mais puritanos, afinal a obra foi toda concebida em casa, num estúdio caseiro.
Mas, dane-se isso tudo: é um disco de inéditas de McCartney! De McCartney!
E tire suas próprias impressões, pois o álbum está disponível para audição nas plataformas digitais desde o dia 18 último. Não é qualquer dia que temos a chance de nos deleitar com um trabalho de inéditas, mas não é qualquer um, não: é um desses que nos faz ter fé na humanidade, fé que toda a tragédia que nos cerca será passageira, fé que a vida pode – e é – bela. São sentimentos que Paul McCartney se habitou a provocar no público, desde os Beatles, e certamente ele sabe disso.
Com músicas apaixonantes em suas camadas instrumentais concebidas no isolamento, “McCartney III” pode até ser a despedida do mestre do pop, porém ouvir esse disco é uma das melhores coisas de 2020. É carinhoso, afetuoso, tem brilho, em resumo: trata-se de um trabalho que passeia pela alma de Pauls distintos, mas igualmente interessantes. E não tem nada de saudosista nele.
‘McCartney III’
Autor: Paul McCartney
Gênero: Rock
Disponível nas plataformas digitais