Júlia Aguiar
Bolsonaro indica militares para órgão antitortura
Ditadura
CNPCT foi criado pela ex-presidenta Dilma Rousseff, em 2013, para combater a tortura em exercício no país desde a Ditadura Militar

Jair Bolsonaro indica Eduardo Miranda Freire de Melo para comandar o órgão antitortura. Foto: Dida Sampaio/Estadão Conteúdo - 2.01.2019
O Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT) foi criado em 2013 – na mesma época que a Comissão Nacional da Verdade (CNV) – com o intuito de consolidar um banco de dados sobre as torturas no Brasil, e assim, erradicar a prática no país.
Além de outras funções, o comitê acompanha legalmente casos de torturas em hospitais psiquiátricos, delegacias, presídios, escolas e asilos. A organização é composta por 23 voluntários, sendo 12 indicados pela sociedade civil e 11 pela Presidência da República.
Nessa segunda-feira (22), Jair Bolsonaro (sem partido) decidiu indicar dois militares para o Comitê.
Eduardo Miranda Freire de Melo é capitão de corveta da Marinha, que também atua no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, comandado pela ministra Damares Alves. O outro indicado é Valdir Campoi Junior, coronel da reserva e instrutor de tiros (que inclusive trabalhou com a Secretaria-Geral da União na construção dos decretos que flexibilizam o porte de armas).
A situação é ainda mais crítica pois nenhum dos dois militares tem experiência no combate à tortura.
Em outubro de 2019, o “filósofo” Olavo de Carvalho afirmou em sua conta no Twitterque a única salvação para o Brasil seria “a união indissolúvel do povo, presidente e Forças Armadas”. O “professor” além de conspiracionista, também é conhecido por ser defensor do Ato Institucional de nº5 (AI-5), medida mais perversa do período de chumbo.
O indicado de Bolsonaro para o órgão, Eduardo Miranda é conhecido por ser ex-aluno e seguidor de Olavo. A nomeação pode parecer corriqueira, tendo em vista a relação de dependência entre o presidente e o exército brasileiro.
Com o fim da segunda guerra mundial, em 1948, a Assembleia Geral das Nações Unidas determinou que “ninguém será submetido a tortura ou crueldade, tratamento ou punição degradante ou desumana”, porém, durante a Ditadura Civil-Militar (1964-1985) a tortura era práxis de controle social.

Bolsonaro e militares durante cerimônia comemorativa do dia do exército, em 2020. Foto: Marcos Corrêa/PR
As atrocidades vividas no Brasil só vieram à tona com a criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV) e a Lei de Acesso à Informação (LAI), quando o sigilo dos documentos do exército foi quebrado. O CNPCT é considerado um importante órgão de fiscalização, sendo simbolicamente um aparato fruto da resistência dos que lutaram contra a ditadura.
“O comitê representa uma vigilância permanente contra as torturas que continuam sendo praticadas no Brasil. E agora colocar um militar para presidi-lo é uma afronta a nossa consciência, a nossa luta e de tudo que já foi feito para garantir a soberania nacional”, explica Pinheiro Salles, jornalista e presidente da Comissão de Direitos Humanos e Liberdade de Imprensa do Sindjor- Goiás, em entrevista ao JM.
Não é segredo para ninguém que o presidente Jair Bolsonaro é favorável a tortura, em entrevista a rádio Jovem Pan em 2016, o então deputado afirmou que: “O erro da ditadura foi torturar e não matar”. Além de já ter exaltado diversas vezes o homem da repressão mais importante do regime, Carlos Alberto Brilhante Ustra, sendo ele o principal torturador do país.
Seu vice-presidente, o general Hamilton Mourão, também é um saudosista. Em outubro do ano passado, o Mourão afirmou ao programa televisivo Conflict Zone que Brilhante Ustra era “um homem de honra e que respeitava os direitos humanos”.
Para Pinheiro Salles, 84, a nomeação de militares para o comitê acentua a gravidade da conjuntura política. “Nunca antes se conheceu um período tão difícil, de completo desrespeito a memória e a vida do povo brasileiro. Se os militares praticaram a tortura durante 21 anos, agora Bolsonaro enaltece, elogia e defende os torturadores e a prática da tortura”, afirma o ex-preso político ao Jornal Metamorfose.
Sequestrado e preso em 12 de dezembro de 1970, Pinheiro Salles passou nove anos detido nos “porões do regime dos generais”. Em artigo publicado no jornal O Popular,em 6 de janeiro último, o jornalista narra as atrocidades da tortura: “[os militares] arrancaram dentes e unhas com alicate. Quebraram braços, costelas, pernas, mandíbulas. Furaram olhos. Urinaram em cara de presos desfalecidos, pendurados em paus-de-arara. Castraram, estupraram, extirparam seios. Afundaram crânios. Com viaturas, moeram o corpo de pessoas encobertas com a areia de praias”.
“Esse comitê possui o significado da mais alta relevância, porque mesmo de acordo com a constituição e a consciência das pessoas honradas desse país, a tortura continua sendo praticada nos porões do atual governo”, explica Salles ao JM.

Gráfico: Tribunal de Contas da União (TCU)/Reprodução
Desde 2018 o número de militares em cargos públicos triplicou. Segundo levantamento feito pelo Tribunal de Contas da União (TCU), até 2020 os militares da ativa e reserva já ocupavam 6.157 cargosde civis nos órgãos públicos, no governo de Michel Temer (MDB) os militares ocupavam2.765 cargos.
A volta dos militares ao poder é fruto de várias conspirações políticas, porém, a falta de justiça aos crimes cometidos pelo exército brasileiro durante a ditadura certamente influencia no tom escancaradamente autoritário expresso pela ala bolsonarista.
"Eu não espero nada desse governo, porque ele [Bolsonaro] não tem absolutamente nenhuma responsabilidade para governar, nem com a constituição ou um país livre e democrático. Então a alternativa que resta para o povo brasileiro é contribuir uma posição de total combate a todas as injustiças e absurdos que estão sendo cometidos. Precisamos de um posicionamento firme, corajoso e sintonizado com as aspirações democráticas. Nós temos é que cutucar a onça de todas as maneiras possíveis, sem conciliação, sem conivência, sem cumplicidade", finaliza o jornalista Pinheiro Salles.