Victor Hidalgo
Borba Gato tem que cair, mas não só ele
Atualizado: 8 de out. de 2021
Opinião
“A função desse mito dos bandeirantes no século XX foi servir como auto-imagem da elite paulista”, afirma o historiador Fernando L'Ouverture

Borba Gato em chamas, foto de Gabriel Schlickmann
Em São Paulo não faltam estátuas e monumentos para racistas. Alguns dizem que eles estão lá para contar a história, para não esquecermos. Mas não esquecer exatamente o que? Muitos deles estão expostos sem nenhum tipo de contexto ou informação, além da forma que são retratados.
Como são retratados? Bom, a exemplo do Monumento à Anhanguera, na frente do parque do Trianon, como esse bandeirante foi representado? Não como uma figura que devemos aprender com os erros e não repeti-los, mas como um homem branco forte, com o olhar para cima, um monumento positivo a sua imagem.
Da forma que está retratado, nem parece que era um assassino de indígenas. Muitos jornalistas e veículos estão horrorizados com a ideia de derrubar essas obras, dizendo que seria apagar a história, que iriamos ser como o Estados Islâmico, que é um pensamento anacrônico. Pois bem, vamos checar quando essas obras foram erguidas.
A do bandeirante Anhanguera, cujo nome verdadeiro é Bartolomeu Bueno da Silva, foi entalhada em mármore pelo italiano Luigi Brizzolara e inaugurada em 1924 nos jardins do Palácio dos Campos Elísios, posteriormente transferida em 1935 para o local que se encontra hoje.
Já a famigerada, e horrenda, escultura de Borba Gato foi inaugurada em 1962 e é composta de argamassa, pedras e mármore. Foi criada pelo artista Júlio Guerra, que disse ao Jornal da Tarde em 1972:
“Detesto cemitério e os monumentos que parecem túmulos em praça pública. O meu Borba Gato não é isso, porque é colorido, alegre, folclórico. Ele se harmoniza com a paisagem que o cerca. Falam que suas linhas são muito retas. Ora, um bandeirante tem que ser austero, tem que ter dignidade. O meu Borba Gato não é um bailarino”.
Essa estátua de um genocida foi recentemente incendiada pelo movimento Revolução Periférica, como um ato de protesto. O líder do grupo, Paulo “Galo” Lima, sua esposa, Géssica Barbosa, e Danilo Oliveira, mais conhecido como “Biu”, foram presos arbitrariamente.
Galo estava preso desde o dia 24 de julho, e foi solto no dia 5 de agosto pelo Superior Tribunal de Justiça, em Brasília, após sua soltura ter sido negada pelo Tribunal de Justiça, sem justificativa.
É uma lembrança já reacionaria de personagens violentos e irredimíveis de nossa história. Por mim, esses monumentos eram demolidos e dos seus restos novos erguidos. Adoraria ver a cabeça decepada de Borba Gato sobre os pés de uma estátua gigantesca de Tupã.
Mas o maior monumento da cidade de São Paulo aos Bandeirantes fica numa das áreas mais nobres da cidade, bem em frente ao Ibirapuera. É o monumento às Bandeiras, feita pelo artista Victor Brecheret, em 1953 e tombada no dia 8 de junho de 1984.
O monumento que celebra o massacre realizado pelos bandeirantes aos povos indígenas e escravizados no país já sofreu intervenções em 2016 por manifestantes que pintaram as obras. Não é de hoje a insatisfação com essa memoria racista da cidade.

Foto de Aloísio Maurício - reprodução
E um lembrete que gosto sempre de fazer: existem estatuas de Hitler na Alemanha para lembrar sobre o que o nazifascismo fez? Não. Temos monumentos as suas vítimas, e como foi um período sombrio da história.
No dia de hoje, 6 de outubro, saiu uma matéria escrita por Leandro Karnal, o filosofo, para o jornal Estadão, comparando Borba Gato aos trabalhos de Bernini. O filósofo, que não é historiador, não conseguiu nem puxar um exemplo nacional para tentar usar em sua defesa de obras racistas. E é anacrônico em sua análise rasa sobre o assunto. Quantos brancos estão dispostos a defender obras racistas nos grandes jornais desse país? A resposta é: muitos.
No final, os jornalistas liberais se importam mais com a derrubada de símbolos escravagistas nos Estados Unidos. Mas quando chega no quintal deles a luta por retomada dos espaços políticos urbanos, se sentem ameaçados e com a necessidade de se defender. Afinal, esses monumentos são um reflexo de como essa elite foi criada em nosso país, e como um espelho, eles se enxergam neles. E nessas horas, a classe fala mais alto que o seu antirracismo de fachada.

Estátua de Anhanguera - Foto: Secretaria de Serviços/Divulgação
E para falar mais sobre o tema, conversei com quem estuda e realmente entende sobre o assunto, Fernando L'Ouverture, que fez sua graduação, mestrado e doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e é professor no Departamento de História da Universidade Federal da Paraíba UFPB.
JM - Qual é o papel de uma estátua no espaço público?
Fernando - Uma estátua é um monumento e, como tal, tem o objetivo de monumentalizar e eternizar um sujeito e seus feitos. Ao ser exposta no espaço público, subentende-se que é o público que está louvando os feitos daquele sujeito representado na estátua.
Mas a verdade, contudo, é que a maioria das homenagens são estabelecidas por grupos políticos que afirmam representar o povo, mas, na verdade, estão diretamente ligados às classes dominantes. Um bom exemplo disso são as homenagens a senhores de escravos nos nomes de ruas, ou nomes de ditadores nas escolas públicas. Tudo isso são formas de monumentalização do passado, de normalizar os feitos de grandes homens de acordo com a visão de mundo das elites.
As estátuas, contudo, carregam outro componente que é a representação imagética desse grande homem, usual do século XIX, em posição que remeta às suas qualidades, como liderança, bravura, sabedoria, etc.
Em última instância, uma estátua visa eternizar uma imagem que, pode se dizer, as elites fazem de si mesmas. Uma espécie de auto-imagem celebratória, exposta no espaço público justamente para afirmar sua dominação política.
JM - Por que não é anacronismo querer derrubar estátuas de colonizadores e genocidas?
Fernando - Anacronismo é um termo difícil, é um conceito que historiadores utilizaram ao longo do tempo para evitar que julguemos as formas de pensar e agir do passado com os nossos valores. Por exemplo, esperar que na sociedade medieval europeia as pessoas tivessem a mesma ideia de razão que nós, hoje, no século XXI, temos.
Mas há algo de anacrônico em várias dimensões da escrita da História, já que a escrita sempre se dá num presente distante do passado do qual se escreve. Em outras palavras, toda representação do passado incorre em anacronismo. Se a gente pegar o caso dos Bandeirantes, por exemplo.
As entradas e bandeiras remetem aos séculos XVIII e XVIII. Mas a narrativa histórica que inseriu eles como responsáveis pela formação da Nação surgiu no século XIX (a ideia de "nação brasileira" seria completamente anacrônica até boa parte do século XVIII). Depois, com o crescimento de São Paulo no século XX, o bandeirantismo virou sinônimo de um "espírito paulista" e que foi bastante reforçado em 1932, na luta das elites paulistas contra Vargas. E por fim, a gente chega em 1960, quando o monumento de Borba Gato é criado em Santo Amaro.
Quanto tempo têm esse monumento? Quantas camadas de significados? E, isso posto, por que só a sua derrubada (que nem sequer aconteceu) é identificada como anacronismo? Então, menos que julgar um ato como anacrônico, talvez o caso seja de pensarmos nos usos políticos do passado - que são tão plurais quanto a sociedade civil pode ser.
JM - As homenagens aos bandeirantes, em São Paulo, por exemplo, serviram para construir um mito?
Fernando - Sem dúvida. É um mito referente ao século XIX, que pressupõe um encontro de três raças: o europeu branco, o indígena e o africano. Mas não é um encontro harmônico, é um processo de dominação, pois é um homem branco livre diretamente envolvido na captura e no aprisionamento e captura de escravos negros e indígenas (que era uma das principais formas de sustento das bandeiras no século XVIII). Com o romantismo e o abolicionismo, a escravidão passa a ser condenada na esfera pública, mas as perspectivas racialistas que fundaram essa imagem do encontro das três raças ganharam cada vez mais terreno.
E a supremacia da branquitude representada no bandeirante seguiu questionada na memória oficial. Mas ao mesmo tempo, o bandeirante estava longe de ser um europeu branco. Muitas vezes nascido no Brasil, por vezes vivendo em comunidades indígenas, essa imagem de supremacia racial era também mitológica.
Foi a forma que o século XIX usou não só para interpretar o passado, mas para fazer esse passado dar sentido ao tipo de dominação política e social que se articulava na época. E com o crescimento industrial de São Paulo, essa imagem de identificação com uma branquitude que subjuga as demais raças em prol de um suposto espírito empreendedor ou aventureiro.
Em certo sentido, a função desse mito dos bandeirantes no século XX foi servir como auto-imagem da elite paulista. A representação ideal do seu domínio político sobre o povo é dada pela perpetuação desse mito.