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  • Foto do escritorJM

Caetano Veloso comove ao lembrar de cárcere

Atualizado: 9 de set. de 2020

Cinema


Dirigido por Renato Terra e Ricardo Calil, ‘Narciso em Férias’ emociona com depoimento sobre prisão na ditadura

Cantor Caetano Veloso teve seu cabelo cortado pelos militares - Foto: Divulgação


Marcus Vinícius Beck


O estilo vanguardista de Caetano Veloso despertou a fúria dos militares. Em dezembro de 1968, 14 dias após a deflagração AI-5, o autor de “Alegria, Alegria” foi levado por agentes à paisana – junto com o amigo Gilberto Gil – de São Paulo, onde morava com a então esposa Dedé Gadelha, para o Rio de Janeiro. Os dois eram acusados desrespeitar o Hino Brasileiro por supostamente terem-no tocado em ritmo de Tropicália, o que era impossível, pois uma música era em decassílabos, enquanto a outra têm oito sílabas poéticas. Após 54 dias no xadrez, Caetano e Gil foram soltos, partiram pra Londres e, de lá, fizeram “Back To Bahia” e “You Don't Know Me”, composições sobre a vida no exílio.


Caetano e Gil foram encarcerados sob o pretexto de serem interrogados pelos fardados. Mas os dois não faziam ideia de o porquê estavam ali e só foram questionados sobre o real motivo – um show que ele, Caetano, teria realizado na boate Sucata, no Rio de Janeiro, com Gil e Os Mutantes – após um mês enjaulados. O depoimento, uma redação “genial, não tem aspas, nem nada”, sentenciava que o artista era uma pessoa “subversiva e desvirilizante”. “Perguntado se sabe cantar Tropicália, respondeu que sei porque é o autor desta música”, lê Caetano, com o documento em mãos, numa das cenas mais tristes de “Narciso de Férias”.


Em quase uma hora e meia, o documentário de Renato Terra e Ricardo Calil comove o público com relatos de um dos artistas mais brilhantes da MPB sobre uma página impressa com tintas da truculência que insiste em não ser virada. E enternece a partir do depoimento sobre o cerceamento da intimidade, fruto da barbárie militarizada, atingindo a sexualidade e espiritualidade. Um exemplo magistral de jornalismo humanizado e fotografia sensível, o longa-metragem mostra que, nestes tempos de flerte com a ditadura, o argumento usado pela repressão naquele ano de 1968 está longe de ser meramente quixotesco – ainda que o seja, é verdade, em certos aspectos.


Trailer do documentário 'Narciso de Férias' - Foto: Reprodução



Sim, a relação que se faz com o obscurantismo de outrora encontra legitimidade no Brasil que estreita sua relação com o “terrorismo cultural” – outro dos termos bizarros que estavam no enxuto vocabulário da repressão. “Narciso em Férias”, documentário feito apenas com a força da oratória de seu protagonista, perfila um retrato bem mais abrangente que a solitária na qual Caetano foi forçado a ficar. E isso ganha um patamar atualíssimo quando o músico elenca gestos que escancaram a luta de classes e a seletividade policial, que solidifica-se em resquícios escravocratas, como a cor e o nível de instrução, características da sociedade brasileira.


Em dada altura do filme, Terra entrega a Caetano uma edição da revista Manchete igual àquela que Dedé lhe dá na prisão. Essa ação aconteceu graças a um sargento que permitia a entrada da esposa na cela. Ele passa as páginas da publicação, surpreso, emociona-se, lágrimas escorrem de seus olhos. Tenta falar, mas em vão: consegue apenas atestar que o oficial era “um anjo, uma divindade na nossa vida”. Depois, o sujeito seria preso. A essa altura, o silêncio toma conta do longa e, na sequência, o músico toca uma versão de “Hey Jude”, dos Beatles.


Do lado B do LP “Revolution” (1968), o músico lembra que “a canção (era) positiva, sinal de que ia melhorar minha situação”. Ao longo do tempo em que esteve preso, Caetano chegou a achar que não recobraria a consciência. Não conseguia sentir suas emoções, nem ereção ele tinha. Vivia sob o temor, ouvia gritos de presos sendo torturado. Título de um dos capítulos da obra “Verdade Tropical”, “Narciso de Férias” deve ser editado como um livro a parte. Enquanto não ocorre, fiquemos com o filme. Como diz Ivan Lessa: “De 15 em 15 anos, o Brasil esquece do que aconteceu nos últimos 15 anos”.


Ficha Técnica

‘Narciso de Férias’

Direção: Renato Terra e Ricardo Calil

Gênero: Documentário

Disponível no Globoplay

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