Lays Vieira
Camarada: uma necessidade e um desafio
Sede de arte
Finalmente o potente debate político de Jodi Dean ganha uma tradução para o português em um momento no qual a luta contra a extrema-direita e a defesa pela democracia se acirra

Livro "Camarada: um ensaio sobre pertencimento político" chega ao Brasil pela editora Boitempo. Foto: Divulgação
Talvez você nunca tenha ouvido falar de Jodi Dean. E, caso você seja um estudioso da Ciência Política e nunca tenha lido algo dela, você está cometendo um erro. Dean é ativista e professora de teoria política, teoria feminista e mídia em Nova York e a cerca de duas décadas tem livros disponíveis. Entretanto, sua primeira tradução para o português, Camarada, chegou apenas agora, em julho de 2021, pela Boitempo. Felizmente e já não era sem tempo. Dean é uma autora necessária nos tempos de hoje. Explicarei o porquê.
Nas últimas décadas, muitas lutas chamaram a atenção da academia para a necessidade de se pensar as identidades e as singularidades dos sujeitos. Marcadores sociais de gênero e raça, por exemplo, ganharam maior espaço nas discussões políticas, enquanto as questões em torno da classe foram, em vários círculos, sendo colocadas em segundo plano.
Muitas autoras e autores se propuseram a pensar esses marcadores de forma interseccional, a exemplo de Ângela Davis e Nancy Fraser. Entretanto, há uma forte tendência no pensamento contemporâneo da esquerda de supervalorização das chamadas questões identitárias, como a própria Dean aponta em "Crowds and Party", seu livro lançado em 2016 e ainda sem tradução para o português, especialmente no capitulo 1, e se propõem a tentar resgatar a importância da coletividade e do partido.
Em grande medida, pode-se entender Camarada, como uma continuação dessa tentativa de resgate e de construir pontes para essa fissura da esquerda de forma mais ampla. Junto a essa questão, Camarada vem como uma ferramenta frente ao anticomunismo. Ano passado, em entrevista ao site State of Nature (traduzida para o português por Andrey Santiago e publicada no site Traduagindo), Dean fala como o anticomunismo tem sido usado para afastar qualquer oposição ao capitalismo e para, cada vez mais (e como sempre), derrotar a democracia.
Dean constantemente trabalha a subjetividade dos sujeitos políticos, da importância de se mobilizar emoções. Esse traço já é perceptivo no próprio nome do livro "Camarada: um ensaio sobre pertencimento político". Camaradas são aqueles que estão do mesmo lado da luta, é uma relação especifica entre membros de um partido, ou grupo, ou coletivo, etc. É solidariedade, auxilio, pertencimento gerando expectativas, capacidade de persistir na luta.
Ao longo de seu ensaio, ela investiga os usos do termo e as relações políticas que cria, os efeitos que gera, em uma analise também bastante ligada a psicanálise (intersecção entre esta e o marxismo), como ela já havia feito em "Crowds and Party".
As principais características do camarada são a disciplina (como geradora de capacidade, coordenação, estratégia), a alegria, a coragem e o entusiasmo. O foco aqui é entender o camarada como uma figura política genérica, independente de quem os camaradas sejam há essa relação, uma relação que não exclui as particularidades de cada um. Dean quer romper com a individualidade característica do capitalismo em prol de uma dimensão igualitária, visando construir solidariedade e unidade.
O cerne do livro são as quatro teses sobre o camarada: 1) “camarada” denota uma relação caracterizada pela semelhança, igualdade e solidariedade; 2) qualquer um, mas nem todo mundo, pode ser um camarada. Ou seja, não é uma relação infinitamente aberta e/ou flexível, ela é uma relação baseada na divisão e na luta, inclusão e exclusão são premissas; 3) o indivíduo, enquanto lócus de identidade, é o “outro” do camarada – não é uma relação de identidade, são elementos em coletivos; 4) a relação entre camaradas é medida pela fidelidade a uma verdade (a verdade política que os une) e se materializa via prática.
Assim, Dean quer expor um dos grandes problemas que a esquerda enfrenta hoje e acaba abrindo espaço para, em vários momentos e lugares, ser a direita (ou extrema-direita) que acaba por canalizar as revoltas populares: sua falta de capacidade de estratégia ou táticas unificadas, capacidade política estratégica.
Para a construção da camaradagem é importante também lembrarmos que: primeiro, as relações entre camaradas são de um tipo diferente das relações entre parentes, amigos, vizinhos, etc., mesmo as vezes elas podendo estar sobrepostas. Em segundo lugar, deve-se colocar o “eu” em segundo plano, porque a camaradagem não cultiva a individualidade na luta política. O terceiro ponto é a camaradagem como grau zero do comunismo trabalhado pela autora. E, por fim, aliados não significa o mesmo que camaradas.
Esse último ponto a autora trabalha muito bem em um dos vídeos de lançamento do livro, disponíveis no canal da editora Boitempo. A ideia de “aliado/aliada” passa uma noção de que a política é algo que pertence a alguém ou grupo naturalmente, em decorrência de uma virtude ou identidade marcada. Isso acaba, em certa medida, neutralizando a política. Esta, na verdade, tem que ser construída.
Como a própria autora salienta no prefácio dessa edição de lançamento, no Brasil atual, mergulhado na extrema-direita bolsonarista, a camaradagem é cada vez mais uma necessidade para aqueles que buscam uma saída desse cenário bizarro. Mas, ao mesmo tempo, a camaradagem também é um desafio. Os escritos de Dean, em especial agora essa tradução, é uma importante ferramenta de luta. A camaradagem é a forma política necessária para a esquerda hoje e para qualquer um que busque um futuro melhor e mais sustentável para a nossa sociedade. Ler Dean é uma urgência.
Livro: Camarada: um ensaio sobre pertencimento político
Tradução: Artur Renzo
Edição: 1ª
Editora: Boitempo
Páginas: 208
Valor: 55,00