Júlia Moura
Clarice, a inesgotável
O que ler?
Rugidos da produção literária de Clarice Lispector ainda ressoam na contemporaneidade no ano em que completaria 100 anos

Autora Clarice Lispector. Foto: Claudia Andujar
No mesmo ano de seu centenário, Clarice Lispector ainda arrasta em seu nome o peso da enigmática personalidade que também carregava em vida. De olhar cortante, espírito livre e sensibilidade banhada na vanguarda, a autora posiciona-se, segundo a fortuna crítica, como uma das escritoras brasileiras mais importantes do século XX. Sua obra está repleta de cenas cotidianas simples e tramas psicológicas densas, reputando-se como uma de suas principais características a epifania de personagens comuns em momentos do cotidiano, como evidenciado em “Amor”, conto da autora onde nos debruçaremos adiante. Quanto às suas identidades nacional e regional, declarava-se brasileira e pernambucana.
Estudou direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), apesar de, na época, ter demonstrado mais interesse pelo meio literário, no qual ingressou precocemente como tradutora, logo se consagrando como escritora, jornalista, contista e ensaísta, tornando-se uma das figuras mais influentes da literatura brasileira e do Modernismo, sendo considerada uma das principais influências da nova geração de escritores brasileiros.
Além de tudo isso, sabe-se que Clarice dominava pelo menos sete idiomas: português, inglês, francês e espanhol, fluentemente; hebraico e iídiche, com alguma fluência; e russo, com pouca fluência levada da infância. Como tradutora para o português, entretanto, utilizou somente o inglês, o francês e o espanhol.
Hoje, o Jornal Metamorfose dedica-se a analisar um de seus contos onde a característica padrão de seus desenvolvimentos narrativos, a epifania, evidencia-se de maneira mais marcante. O famoso conto de Clarice, “Amor”, presente na obra “Laços de Família”, livro de contos, carrega em si muito do que caracteriza a maior parte da produção da autora.
“Amor" retrata um episódio da vida de uma mulher comum que, perante uma situação ou experiência cotidiana, sofre uma epifania que a faz refletir sobre si mesma e o mundo que a rodeia. Essa mulher é Ana, uma mãe, esposa e dona de casa que ocupa o seu tempo cuidando da família e das tarefas domésticas.
A personagem, retornando de suas compras, avista um cego mascando chiclete em um bonde e, tomada por uma epifania, derruba suas compras e parte em uma jornada complexa de dualidades presentes em si. Parte do cotidiano, passaria e ainda passa despercebida para a maioria das pessoas, mas provocou um efeito devastador em Ana, que em uma narrativa de um dia, debruça-se em diversos questionamentos que desestabilizam sua noção de mulher convencional em um profundo mal-estar diante do mundo.
Aquela visão perturbou Ana como uma ofensa, já que, para ela, foi "como se ele a tivesse insultado", porque a sua simples existência perturbava a sua paz alienada, porque a confrontava com a dureza da vida, a realidade nua e crua. A personagem, acomodada em sua rotina quase automática, foi despertada diante de "uma vida cheia de náusea doce", autêntica, cheia de coisas inesperadas, de beleza e sofrimento.
Nesse sentido que Ana se torna a única personagem a quem a autora confere densidade psicológica. Outro aspecto que provoca maior tensão ainda é o fato de a narrativa se passar em um único dia, algo que se assemelha ao romance Mrs. Dalloway (1980), de Virginia Woolf, e o jogo contínuo de reflexões e questionamentos que, apesar de inquietantes, não movem a personagem a uma transformação. Essa movimentação volátil pós-epifania traduz que nem sempre a personagem se desloca para uma real alteração do curso de sua vida.
As epifanias são comuns em personagens femininas de Clarice Lispector, embora, novamente, a movimentação não estremeçam de fato as estruturas materiais da vida das personagens. Ana desloca-se de sua vida e passa a estranhar o próprio lar, mas isso não faz com que ela escape da mediocridade, e de sua tristeza com a precariedade da vida. Assim podemos admitir, que o desfecho banal do conto acontece justamente pela não movimentação de Ana após sua epifania. Ana retornou para sua alienação e conforto da suposta e aparente ignorância, porque tem ciência do incômodo causado pelas revelações epifânicas da vida, e “antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.”
Transportando para a angústia de nossos dias, a conformidade não é distante do que enxergamos, a desmotivação diante da eterna sabotagem que vivemos é mais do que um jogar de toalha, é a percepção real e indignada do pouco poder desestabilizador das epifanias que, por mais que nos arregalem os olhos, custam caro e doem na espinha.