Marcus Vinícius Beck
Como uma onda no mar
Obituário
Jornalista marcou cena da comunicação ao ousar pautar questões ambientais numa época em que desmatar era praxe

Um dos últimos registros do jornalista Álvaro Duarte feito pela filha, a fotojornalista J. Lee Aguiar, em 17 de julho de 2018 - Foto: Acervo Pessoal
E mais um profissional da imprensa perde a batalha para o coronavírus: morreu ontem, em decorrência de complicações provocadas pela covid-19, o jornalista Álvaro Duarte, aos 57 anos. Ele estava internado no hospital Santa Joana, no Recife. O sepultamento ocorreu hoje no cemitério Parque das Flores, na capital pernambucana.
Álvaro marcou época na imprensa goiana ao ser um dos idealizadores do programa “Trilhas do Brasil”, exibido na TV Serra Dourada entre 2001 a 2013. Formado em Jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco em 1990, acreditava no poder da imagem e passara por grandes redações, como Manchete, Anhanguera (GO), TV Globo (DF), além de TV Goiânia e TV Jornal, afiliada ao SBT em Pernambuco.
Jornalista à frente de seu tempo, mas carinhoso com camaradas e nervoso quando o combinado não dava certo, embarcou na arriscada empreitada de abordar pautas ambientais em Goiás, estado conhecido por ser berço dos ruralistas. Nos anos 1990, comandou o “Vida Verde”, que ficara no ar por cinco anos: primeiro, na grade da Anhanguera. Depois, na TV Brasil Central, encerrando a trajetória na Serra Dourada.
“Ele tinha projetos mirabolantes, ideias megalomaníacas. Sempre acreditou que era possível ganhar dinheiro com jornalismo independente”, diz a jornalista Júlia Aguiar, filha de Álvaro e fundadora do Jornal Metamorfose. “Sempre é possível fazer jornalismo independente. Isso é uma coisa que meu pai me ensinou e as pessoas que tiveram contato com a história dele deveriam saber disso. Meu pai acreditava no jornalismo independente.”
Foi na Serra Dourada que Álvaro ajudou a colocar no ar, junto com os jornalistas Rai Alves e Rosângela Aguiar, o “Trilhas do Brasil” – com o qual ganhara 12 prêmios regionais e nacionais, bem como menções honrosas e títulos que lhe foram conferidos pela Assembleia Legislativa de Goiás em razão da defesa do bioma Cerrado e sua atuação no audiovisual. “Era um cara cheio de ideias e eu as executava”, atesta Rai.
“Uma vez em Santa Catarina tínhamos um voo de helicóptero pra fazer às 7h, saímos na noite anterior pra dar um rolê na cidade e, quando vimos, já eram 4h”, recorda-se o jornalista, rindo. Sem muita escolha para o momento, ele e Álvaro aguardaram o dia nascer para então cobrir a pauta, às 6h30. “Mas a matéria foi feita”, garante.
Curiosidades da vida boêmia à parte, o “Trilhas” guiava-se pela necessidade de mostrar as belezas naturais do país a partir de documentários jornalísticos que duravam em média 30 minutos. Nesse aspecto, afirma Rosângela, Álvaro foi importante, pois ele era empreendedor, com visão ampla. “Ele fazia parceria e a gente saia mostrando as coisas do jeito que a gente achava que tinha que mostrar.”
Sim, a trupe era transgressora. Ou melhor, inovadora. O programa mostrava, por exemplo, como municípios com boa educação preservam o meio ambiente. “A saúde, o próprio saneamento básico, asfalto, escola: tudo isso está ligado com a preservação do meio ambiente. Quanto mais as pessoas são conscientes onde vivem, melhor vão cuidar do lugar”. É o que os ambientalistas chamam de cuidar localmente para atingir o globalmente. “Isso era meio que um trabalho de formiguinha que a gente fez.”
Álvaro com amigos - Foto: Acervo Pessoal
Embora fosse uma empresa formal, na prática, o “Trilhas” funcionava como uma cooperativa: trabalhava-se, pensava-se e agia-se em conjunto, com todo mundo dando seu pitaco e apresentando ideias. O que passava, claro, ao largo de serem relações baseadas na imposição - o pesquisador Bernardo Kucinski, na obra “Jornalistas e Revolucionários”, apontou poucos veículos que existiram sob esse molde: um deles, era o jornal porto-alegrense “CooJornal”, fundado por 66 jornalistas, em 1974.
“Cada um tinha ideia e a gente ia trocando essas ideias e as ideias iam evoluindo e daí saíram grandes programas, com vários prêmios”, lembra Rosângela, que foi casada por 12 anos com Álvaro Duarte . Dessa efervescência criativa, nasceram os ao vivos que eram feitos pela campanha, em parceria com a TV Serra Dourada, “Bioma Cerrado Patrimônio Nacional – Abrace Essa Ideia”. Aos domingos, a equipe do “Trilhas” estava num parque de Goiânia, com atividades voltadas para a pauta do meio ambiente.
Dentre as iniciativas, ciclismo. Diz Rosângela Aguiar: “(fazíamos) mil coisas para chamar atenção, para transformar o Cerrado em patrimônio nacional e preservá-lo, que vem perdendo cada vez mais área e é um bioma extremamente importante. Essa ideia foi uma ideia que surgiu em conjunto, acho que de todos nós, mas capitaneada pelo Álvaro: ele tinha esse lado inventivo, criativo e empreendedor, principalmente.”
A vida de jornalista, de fato, reserva momentos curiosos. Numa delas, num boteco no Setor Bela Vista, nasceu o Festival de Cinema e Vídeo Ambiental (Fica). Álvaro estava lá: ele deu uma força, o “Trilhas do Brasil” cobriu quase todas as edições e o programa viu in loco a evolução do Fica. “As coberturas eram sempre muito intensas e a gente sempre conseguia acompanhar tudo: filmes, debates; debates dos filmes, sobre meio ambiente, shows, mesas-redondas, oficinas, com uma equipe de quatro, cinco pessoas.”
Não por acaso jornalista, Júlia traz na bagagem a referência dos pais. Em vídeo-manifesto publicado três dias antes da fatídica notícia, ela manifestou raiva e indignação pelo fato de o pai se tornar mais um número na estatística do genocídio em curso no Brasil. Todos os projetos que tocou e foi ponta de lança, como este JM, sempre trouxeram a referência do berço como essência da própria comunicadora na qual se tornou, cujo ponto nevrálgico é fazer um jornalismo honesto.
Júlia não tem dúvidas: Álvaro Duarte compreendia a força do jornalismo independente, sobretudo no audiovisual, como uma forma de transformar o mundo a partir da imagem. “Ele acreditava muito nisso”, sentencia a jornalista. “Sempre correu atrás dos sonhos dele, de forma independente e autônoma. Esse é o grande legado: é possível fazer jornalismo independente, é possível mudar o mundo.”
Alegre, carismático e engraçado, o jornalista também se destacava pelo talento de tocar violão, habilidade que desenvolveu apenas com o ouvido atento e refinado. Em sua última passagem por Goiânia, durante o aniversário de 22 anos da filha, em 2018, não bebeu. E animou a festa, deixando uma influência definitiva entre os camaradas de Júlia que, ao ouvirem os relatos dele, viram a possibilidade concreta de seguir produzindo jornalismo independente, ético e engajado na liberdade dos povos.
Aos 15 ou 16 anos, rememora Júlia, Álvaro chegou a fazer parte do grupo MR-8. Os militares descobriram que o secundarista fazia parte do grupo e começou-se uma varredura que comprovou seu envolvimento, mas o jovem nunca participou da luta armada. “Aí chegaram ao meu avô, que era coronel e disseram que ele seria demitido e meu pai assassinado, caso não o endireitasse”, detalha Júlia, lembrando dos tempos em que ocupou a Rádio Universitária da UFG junto com este repórter e recebera uma ligação do progenitor preocupado com as aventuras revolucionárias da filha.
Últimos registros do jornalista pela filha J. Lee Aguiar, em 17 de julho de 2018 - Foto: Acervo Pessoal
Nos últimos anos, já morando em Recife, o jornalista montou uma produtora para realizar o programa “Vida Saudável”, veiculado na TV Jornal, afiliada do SBT em Pernambuco. Com curso de roteiro da Academia Brasileira de Vídeo e pós-graduado em Saúde Pública pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ocupou o cargo de editor-chefe do programa “O Povo”, na TV Jornal, em Caruaru (PE), além de fazer curtas e documentários institucionais. Havia sido desligado do cargo há poucos meses.
Dentro das possibilidades da distância estabelecida pelas circunstâncias da vida, sempre apoiou a filha, amigos e camaradas dela em suas empreitadas. Não por acaso, vale ressaltar, ligados à prática do bom jornalismo, com viés contestador e ativista. Sua presença, assim como sua memória, estará presente nessa e em outras gerações de profissionais da notícia, como um exemplo de que é possível, sim, exercer de forma ética e enérgica essa que é mais que um ofício, é uma missão social.
Álvaro Brito Duarte deixa esposa, filha e uma legião de amigos. (Colaborou Heitor Vilela)