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Desordem informacional

Fake News


Uma estrutura conceitual para analisar Fake News e a importância dos agentes, mensagens e interpretações em uma comunicação que se converteu em um mecanismo de pertencimento


Lays Vieira


As discussões sobre de bolhas epistêmicas, a diferença entre opinião e argumento, os vieses cognitivos, crenças, etc já são antigas, vide a própria Filosofia. Porém, pelo menos desde a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, e aqui no Brasil especialmente após 2018 com a vitória presidencial de Jair Bolsonaro, assistimos a uma intensificação e correlação entre polarização e desinformação. Na base do fenômeno está o forte e cada vez mais acelerado boom das novas tecnologias de comunicação e informação, destacadamente os celulares e seu acesso à internet, gerando uma mega popularização das chamadas redes sociais, a partir de 2010. De dois anos para cá, “Fake News” se tornou um termo ordinário para nós brasileiros.


Recentes episódios, como aqueles envolvendo o chamado “gabinete do ódio”, as denúncias sobre robôs bolsonaristas atuando em redes sociais e, mais recentemente, a votação da PL 2630/2020 (popularmente conhecida como PL das Fake News) recheiam os noticiários, tradicionais e independentes, e nossas conversas entre afetos. Obviamente, essa é uma discussão necessária. Na esfera política da atualidade entender esse fenômeno é essencial para as democracias. Por isso, quero aqui destacar duas questões. Mas antes, para tal usarei como apoio, por um lado, as discussões realizadas no curso “Verdade e Desinformação”, oferecido pela faculdade de Filosofia da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), recém finalizado; e, por outro lado, o relatório intitulado “Information Disorder: toward an interdisciplinary framework for research and policy making”, de Claire Wardle e Hossein Derakhshan, feito a pedido do Conselho Europeu, em 2017. Segundo os autores: “neste relatório, prestamos muita atenção às teorias sociais e psicológicas que ajudam a entender por que certos tipos de desinformação são amplamente consumidos e compartilhados. Considerar o consumo e a disseminação de informações apenas da visualização da transmissão é inútil, pois tentamos entender a desordem informacional”.


Posto isso, continuemos. Questão um: os bots do Twitter (um tipo de software que controla uma conta), robôs ou algoritmos não explicam tudo sobre esse fenômeno marcado pela desinformação. Questão dois: as discussões se focam muito em textos e pouco em imagens, memes, produtos audiovisuais e infográficos (a exemplo das denúncias de infográficos com dados falsos apresentados na votação da PL 4162). Porém, imagens importam e assim como imagens, as palavras também importam. Aqui me refiro a conceitos, no sentido de pensar em condições logicamente necessárias e suficientes para sua elaboração e utilização. Ou seja, estou a falar da importância, da necessidade, mas também do problema de estabelecer o conceito sobre o referido fenômeno. Por isso é importante destacar que “fake news” e “desinformação” podem ter diferentes significados e é preciso ter cuidado com isso. A defesa desse texto, assim como também presente no referido relatório, é não usar o termo “fake news” para lidar com o fenômeno e sua relação com a política, a democracia e a polarização. E por que não? Porque ele se mostra inadequado para a complexidade que se vislumbra e porque ele se tornou um termo que poderosos e políticos podem usar para atacar a liberdade de expressão e de imprensa (a exemplo da PL 2630).


Então, que termos poderíamos usar? É aqui que entra o relatório. Vale ressaltar que este possui limitações, comparando-o com, por exemplo, o livro “Network Propaganda: manipulation, disinformation and redicalization in American Politics”, o segundo tem a vantagem de apontar como, para tentar resoluções efetivas para o problema, é necessária mais pesquisas e ter em mente que os fatores determinantes do fenômeno são muito mais políticos e ideológicos do que tecnológicos. Entretanto, isso não tira o mérito do que Claire Wardle e Hossein Derakhshan fizeram ao defender e demonstrar a utilização do termo “desordem informacional” para analisar o fenômeno. “Desordem informacional” é um conjunto, um ambiente, um ecossistema recheado de informações equivocadas, desinformação e informação mal-intencionada. E sim, são coisas diferentes. E, por mais que os contextos brasileiro, norte-americano e europeu sejam diferentes, a obra oferece insights importantes. São eles que trago abaixo.


O relatório começa com uma nova estrutura conceitual para falar sobre o fenômeno, onde ele é apresentado como composto por: 1) três tipos de desordem informacional: desinformação, informação equivocada e informação mal-intencionada; 2) três fases da desordem: criação, produção e distribuição; e 3) três elementos da desordem: agente, mensagem e intérprete. Decorreremos mais detalhadamente cada um deles.


Na maioria dos discursos sobre “fake news” os três tipos de desordem informacional se misturam. Mas, é importante distinguir mensagens verdadeiras daquelas falsas e mensagens criadas, produzidas ou distribuídas por "agentes" que pretendem prejudicar aquelas que não são. Por isso temos que: a) Desinformação (união das duas abaixo – equivocada e mal-intencionada) são informações falsas e deliberadamente criadas para prejudicar pessoas, grupos sociais, organizações ou países; possuem um falso contexto, conteúdo falso, conteúdo manipulado ou fabricado. Por outro lado, b) Informações equivocadas são informações falsas, mas não criadas com a intenção de causar danos; possuem conexões falsas, conteúdo enganoso. Por fim, c) Informações mal-intencionadas são informações baseadas na realidade, são genuínas, mas usadas para infligir danos a uma pessoa, organização ou país, a exemplo de vazamentos, assédio, descontextualização, difamação, discurso de ódio, etc. Assim, devemos examinar como as três se interconectam e como essa interconexão é essencial para pensarmos falsidade e os danos causados. Vale ressaltar que elas podem ser disseminadas por veículos de mídia tradicional também, a exemplo das armas de destruição em massa que supostamente o Iraque possuía e que o The New York Times divulgou a época ou sobre o relatório da OEA (Organização dos Estados Americanos) sobre a legitimidade das eleições na Bolívia, que depois se demonstrou errôneo metodologicamente, mas o jornal noticiou o erro só depois e, nesse meio tempo, Evo Morales foi deposto. Por isso é vital pensar “quais os efeitos disso?”.


Quanto ao segundo componente, temos três fases:


1) Criação: mensagem é criada; 2) Produção: mensagem é transformada em um produto de mídia; 3) Distribuição: mensagem é distribuída ou tornada pública.


O terceiro componente, seus elementos: 1) Agente. Quem foram os 'agentes' que criaram, produziram e distribuíram, por exemplo, e qual foi a motivação deles?; 2) Mensagem. Que tipo de mensagem era essa? Que formato foi usado? Quais foram as características?; 3) Intérprete. Quando a mensagem foi recebida por alguém, como eles a interpretaram? Que ação, se houver, eles tomaram?


Assim, é importante considerar as diferentes fases de uma instância de desordem informacional concomitante aos seus elementos. E, uma vez distribuída, uma mensagem pode ser reproduzida e redistribuída infinitamente, por muitos agentes diferentes, todos com motivações diferentes. Por exemplo, uma publicação de mídia social pode ser distribuída por várias comunidades, levando sua mensagem a ser captada e reproduzida pela mídia convencional e distribuída ainda a outras comunidades e assim sucessivamente. Por isso é essencial discriminar a análise sobre desordem informacional dessa forma, caso contrário perderemos suas nuances.


Pensar o papel da mídia convencional como agentes na ampliação (intencional ou não) de conteúdo fabricado ou enganoso é crucial também para a compreensão do nosso fenômeno. A verificação de fatos é praxe para o jornalismo de qualidade, mas as técnicas usadas pelos que se munem e se beneficiam da deserdem informacional nunca foram tão sofisticadas. Por isso, o relatório oferece, dentre outras coisas (o que a sociedade civil pode fazer, o que os órgãos financiadores podem fazer, o que as empresas de tecnologia podem fazer, etc), algumas perguntas que podem ser feitas. O exercício a seguir se refere aos elementos (ponto 3) frente a analise de uma informação.


Os agentes estão envolvidos nas três fases da cadeia de informação - criação, produção e distribuição. Sete perguntas são colocadas: 1) Que tipo de ator são eles? (podem ser oficiais, como serviços de inteligência, partidos políticos, organizações de notícias; podem não ser oficiais, como grupos de cidadãos, etc.); 2) Quão organizados eles são? (podem trabalhar individualmente, em organizações de longa data e fortemente organizadas, como empresas de relações públicas ou grupos de lobby, ou em grupos improvisados ​​organizados em torno de interesses comuns); 3) Quais são as motivações deles? (financeiro, político, social, psicológico, etc.); 4) Quais públicos eles pretendem alcançar? (diferentes agentes podem ter diferentes públicos em mente); 5) O agente está usando tecnologia automatizada? (um bot, etc); 6) Eles pretendem enganar? (pode ou não ter a intenção de enganar deliberadamente o público-alvo); 7) Eles pretendem prejudicar? (o agente pode ou não pretender deliberadamente causar danos).


Quanto a mensagem, temos que elas podem ser comunicadas pelos agentes pessoalmente (fofocas, discursos etc.), em texto (artigos de jornal ou panfletos) ou em material audiovisual (imagens, vídeos, gráficos em movimento, clipe de áudio editado, memes, etc.). Daí proporem-se cinco perguntas:


1.Qual é a durabilidade da mensagem? (longo prazo, curto prazo, momentâneo); 2. Qual é a precisão da mensagem?; 3. A mensagem é legal? (ela pode ser ilegal, como nos casos de discurso de ódio reconhecido, violações de propriedade intelectual, violações de privacidade ou assédio); 4. Se apresenta como uma fonte oficial? (ela pode usar a marca oficial, como logotipos, de forma não oficial ou roubar o nome ou a imagem de um indivíduo para parecer credível); 5. Qual é o destino pretendido da mensagem? (o agente tem em mente um público-alvo, que quer influenciar, mas isso é diferente do alvo da mensagem, aqueles que estão sendo desacreditados, por exemplo, o alvo pode ser um indivíduo, uma organização, um grupo social ou uma sociedade inteira).


Já quanto ao intérprete: o público raramente recebe informações passivamente. Um "público" é composto por muitos indivíduos, cada um dos quais interpreta informações de acordo com seu próprio ciclo sociocultural, posições políticas e experiências pessoais. Os tipos de informações que consumimos e as maneiras pelas quais as entendemos são impactadas significativamente por nossa identidade subjetiva e pelos grupos aos quais nos associamos. E, em um mundo onde o que gostamos, comentamos e compartilhamos é visível para nossos amigos, familiares, colegas, etc. essas “forças sociais” e performativas são mais poderosas do que nunca. Afinal, para muitas pessoas, é mais fácil ignorar ou resistir a informações que se opõem à sua própria visão de mundo do que reavaliar tal visão. Isso tem a ver com o que os autores chamam de “'visão ritual da comunicação”, tendo em vista que as pessoas procuram e consomem conteúdos por várias razões, não apenas se informarem (se sentirem conectada a pessoas semelhantes, pertencimento, se associaram a uma identidade, etc). A “visão ritual da comunicação” não é sobre “o ato de transmitir informações, mas a representação de crenças compartilhadas”. É uma performance na qual nada nada precisa ser aprendido, mas uma visão particular do mundo é retratada e confirmada. Dessa forma, a leitura e a escrita de notícias nesse contexto é um ato ritualístico e dramático. Explico: segundo os autores, as nossas redes sociais são impulsionadas pelo compartilhamento de conteúdo e isso inclui conteúdo emocional. A arquitetura dessas redes é pensada para que toda vez que um usuário publique algo e esse algo recebe mais “likes”, é comentado ou compartilhado, mais o usuário se sente realizado, importante, como fazendo algo útil, etc. Somos seres sociais, intuímos os tipos de postagens que melhor se adaptarão às atitudes predominantes em nosso círculo social. Assim, em um contexto de desordem informacional, esse aspecto performativo de como as pessoas usam as redes sociais é fundamental para entender como as informações falsas e desassociadas se espalham.


O que o "intérprete" pode fazer com uma mensagem destaca como os três componentes da desordem informacional devem ser considerados partes de um potencial ciclo interminável. Em uma de mídias sociais, onde todos são possíveis editores, o intérprete pode se tornar o próximo "agente", decidindo como compartilhar e enquadrar a mensagem para suas próprias redes. As soluções não são fáceis e não estão dadas. Mas, para furar essa “bolha” é preciso mais do que informações diversas e com fontes confiáveis. É preciso nomear o problema e trazer para a discussão seus fatores políticos e ideológicos.


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