top of page
  • Foto do escritorJúlia Aguiar

E os camaradas no Cazaquistão?

Internacional

Manifestante anarquista relata que jornalistas independentes, artistas e líderes de sindicatos foram presos e torturados durante o apagão de quatro dias no Cazaquistão. Confira a entrevista completa abaixo

Manifestações começaram a ficar violentas. 5 de janeiro de 2022. Foto: Zhanabergen Talgat


Imagine viver em um país em que grande parte da economia local vem da extração de gás e minérios. Um lugar onde o gás é usado como combustível para toda a logística alimentícia, transporte público e privado. E além disso, uma população majoritariamente de trabalhadores da indústria de minerais.


Agora, imagine que no primeiro dia de 2022, o presidente de seu país decide aumentar em 100% o valor desse mesmo gás. Foi o que aconteceu com o 9º maior país do mundo, o Cazaquistão, localizado na Ásia Central.


Os protestos começaram pacificamente na cidade de Zhanaozen com uma greve dos mineradores e rapidamente se espalharam por todo o país. Em Altamy, a maior cidade do Cazaquistão, milhares de pessoas se uniram para marchar contra o aumento do gás, porém muito rapidamente as demandas se tornaram mais radicais e os manifestantes começaram a pedir a renúncia do presidente Kassym-Jomart Tokayev.


Esse foi o primeiro levante popular massivo do país desde a independência da união soviética, em 1991.


“Os protestos ainda estavam pacíficos quando as autoridades começaram a reprimir violentamente o levante. Só no dia seguinte a grande multidão veio ocupar o "akimat" (casa do governo). Quando o akimat estava queimando, conversei com essas pessoas e eles não eram violentos ou agressivos. Eles nos avisaram que agora os guardas de akimat estavam atirando em manifestantes. Essas pessoas não foram organizadas por ninguém. O que eu testemunhei, e muitos outros meus camaradas é que manifestantes e "saqueadores" são pessoas diferentes”, explica O., anarco-feminista residente de Altamy, que prefere manter o anonimato por medo de retaliação.



Nossa fonte, O., relatou que os policiais começaram a atirar com armas de fogo antes de manifestantes incendiarem a sede do governo em Almaty e afirma que os manifestantes mais “agressivos” não eram organizados por ninguém, nem tinham pautas específicas.


Em entrevista exclusiva ao Jornal Metamorfose, O. relatou que mais de 600 pessoas foram presas e torturadas, entre elas muitos jornalistas independentes, lideranças sindicais e manifestantes comuns. “Muitos civis que nunca haviam participado de manifestações estão desaparecidos”, conta ao JM.


Não é a primeira vez que o governo do Cazaquistão revida com extrema violência contra manifestantes. Em 2011, na cidade de Zhanaozen, mais de 100 pessoas foram assassinadas em um protesto que também reivindicava o fim do aumento dos combustíveis. A população de Zhanaozen, onde aconteceu o banho de sangue, nunca esqueceu o levante e suas mortes. E não foi por acaso que foi onde os protestos de 2022 começaram.


O levante foi provocado pela intensa sensação de injustiça, corrupção e miséria que vem crescendo perante a população. “Tinha todas as chances de se tornar uma revolução, mas não acredito que as pessoas tenham qualquer ideologia, elas estão simplesmente exaustas da pobreza”, afirma O. Atualmente, a principal pauta levantada pelos manifestantes é a possibilidade de um governo democraticamente eleito pelo povo, algo que não há perspectivas de acontecer, segundo O.


Ela afirma que a maioria das pessoas observa o governo do Cazaquistão como uma “republica das bananas”. Uma falsa democracia encabeçada pela proibição de qualquer partido e organização que não seja a do atual presidente. Para o povo cazaque o colapso era inevitável.


Terrorismo


Foto: Zhanabergen Talgat

O governo de Kassym-Jomart Tokayev criou a narrativa de que a violência dos protestos estava sendo causada por células terroristas adormecidas nos últimos 30 anos de “independência”. Notícias sobre terrorismo tomaram os veículos russos. Segundo O., notícias falsas passavam na televisão e a narrativa da mídia era de que o país sofria com uma tentativa de “golpe”, onde terroristas tentavam derrubar o atual governo, que estava disposto a retirar os aumentos.


“Me parece muito conveniente que esse material terrorista seja tão útil para o governo (inesperado né?) manter suas posições e parecer salvador aos olhos do povo”, explica a manifestante anarco-feminista de Altamy. Segundo as informações divulgadas pelo governo Cazaque, cerca de 10 mil “bandidos” estão presos, não há nenhuma informação sobre as vítimas assassinadas por soldados e policiais.


Após alguns dias dos intensos protestos, o governo de Tokayev deixou o país sem acesso à internet por quatro dias. Durante esse período, O. relatou que havia um toque de recolher e que as ruas de Almaty estavam desertas, a própria polícia abandonou a cidade antes mesmo do decreto presidencial. “Se ouvia muitos tiros e granadas de efeito moral, corpos estirados no chão, muitos danos de lojas, incêndios. Ficamos todo esse período sem polícia, bombeiros, médicos. A cidade foi abandonada por todas as autoridades. A gente só podia atender telefonemas locais e ninguém sabia o que estava acontecendo ao redor do país e nem mesmo na própria cidade”, relata O. ao Jornal Metamorfose.


Oficialmente, a internet foi desligada para evitar mais ataques terroristas. Tokayev afirmou em discurso que "manifestantes pacíficos" não serão perseguidos e que ele luta pela liberdade de expressão.


O fim dos protestos

Almaty sob a fumaça dos incêndios, poluição e neblina - 6 de janeiro de 2022. Fotógrafo anônimo.


Não há nenhuma informação oficial sobre o número de presos políticos e nem perspectiva de quando haverá outro levante. A população está preocupada com a influencia do exército russo, que foi enviado por Vladimir Putin para “ajudar” a conter o terrorismo no país.


O. acredita que os “terroristas” são parte de uma guerra interna do governo e que os ataques foram coordenados, tendo em vista a alta organização entre os manifestantes mais “radicais” e pela falta de pautas específicas desse grupo. A violência no país não pode ser identificada como um grupo unificado, não possuindo símbolos próprios e nem bandeiras.


A anarco-feminista não acredita em teorias de que os ataques vieram de forças "externas". “Mas estas definitivamente não eram estruturas de base. Parece que o governo deixou isso acontecer, mas nada pode ser dito com certeza agora”, afirma O.


“Para concluir, quero dizer que eu e nosso país como um todo, nunca vivemos algo assim. De longe, esta é a revolta mais significativa na nova história do Cazaquistão. E, de qualquer forma, espero que mesmo assim dê algum tipo de avanço, além de uma repressão mais dura”, finaliza O.

Logo do Jornal Metamorfose
bottom of page