Marcus Vinícius Beck
Estética da fome
Cinema
Mostra do Telecine reúne filmes que marcaram o cinema novo, movimento que estabeleceu uma ruptura com o que era feito no Brasil

Cena do filme ‘O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro’, de Glauber Rocha
E já se passaram quase 60 anos da estreia de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”. Em 1964, o filme de Glauber Rocha foi selecionado para a mostra oficial do festival de Cannes, junto com “Vidas Secas”, de Nelson Pereira dos Santos. Se para os modernistas da Semana de 22 a fome era estética, Glauber e companhia tinham uma visão diferente: eles acreditavam que se tratava de uma questão essencialmente política.
Era preciso se revoltar contra as tiranias dos endinheirados que tornavam a vida de um povo colonizado um martírio de sangue, suor e barriga roncando. Veio então “Deus e o Diabo” e “Vidas Secas”, dois dos filmes mais politizados realizados pelos cinemanovistas, com uma estética que retratava o horror da sociedade brasileira: ao contrário de Oswald de Andrade e sua patota, para o cinema novo o interessante era mostrar a realidade dos desfavorecidos que viviam num país colonizado.
“Deus e o Diabo” estava longe de ser um filme qualquer e marcava um ponto de virada na obra glauberiana, após o diretor experimentar linguagens em “Pátio” (1959), “Cruz na Praça” (1959) e “Barravento” (1962). O governo fardado da ocasião passou a dificultar as tentativas de Glauber em realizar um cinema que focasse nos problemas brasileiros, porém seu filme que mais deixou os ânimos da direita e esquerda assanhados foi “Terra em Transe” (1967), o mais impactante longa do gênio da raça.
Além da expectativa em torno do segundo filme de Glauber, “Terra em Transe” havia sido há pouco liberado pela censura e dividia a opinião dos críticos, assim como a do público. Mais escrachado do que propriamente louvado, taxado de alegórico demais e de difícil assimilação, os resenhistas do jornal Correio da Manhã dedicaram uma bofetada de palavras àquilo que, na visão deles, deveria ser mais explícito em termos políticos, mas essa tese esbarrava num ponto: com a censura, isso se tornava inviável.
Como desferir um golpe no peito da ditadura se havia uma censura que amordaçava ou engaiolava críticos do regime? Foi esse mar obscurantista que levou Glauber ao exílio nos anos 1970 e lhe impedira de filmar qualquer coisa que se relacionasse com o sistema político brasileiro. É desse tamborim que veio “As Armas e o Povo”.
Antes disso, em 1969, o cineasta lançou “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro”. O longa expõe a miséria da população brasileira e, prontamente, fora censurado pelo general Emílio Garrastazu Médici. Em cena, a relação permeada pela luta de classes dos personagens, com os donos do poder representados pelo coronel Horácio. Os oprimidos são mostrados a partir dos habitantes pobres da cidade.
Do ponto de vista estético, o plano-sequência do confronto entre Coirana e Antônio dos Mortos se tornou um dos mais cultuados da filmografia glauberiana. Com a câmera em punho, a sequência enfoca os personagens, e condensa a naturalidade do improviso e o aspecto teatral do filme: a produção leva o espectador a dissecar a realidade do chamado terceiro mundo a partir da dialética entre as cenas e a edição.
Óbvio: os cinemanovistas ousavam mergulhar no lado que as autoridades brasileiras queriam maquiar. Eram filmes de baixo orçamento, com uma linguagem autoral e com a pretensão de estabelecer uma ruptura com o cinema feito no Brasil até então.
'Vidas Secas': fotografia estourada captou sol do Sergipe
“Cinco Vezes Favelas", produção dirigida por um grupo que contava com Joaquim Pedro de Andrade, Cacá Diegues e Leon Hirszman, marca – por assim dizer – a inauguração do movimento. Depois, são filmadas obras como “Os Cafajestes” (1962), de Ruy Guerra, e “Vidas Secas” (1963), de Nelson Pereira. No final da década, Joaquim Pedro adaptou às telonas o anti-herói “Macunaíma”, do escritor Mário de Andrade, numa estética reverenciada pelas cores gritantes e pela sátira social.
É preciso dizer, de fato, que parte desses filmes foram concebidos sob as ideias desenvolvidas por Glauber Rocha no ensaio “Eztetyka da Fome”, publicado na terceira edição da Revista Civilização Brasileira. Glauber pregava que o homem latino-americano precisava reagir à desigualdade e à exploração, e se possível de forma agressiva. Foi o que, vale ressaltar, o cinema novo fez a partir de personagens que comiam terra e raízes, que roubavam e matavam para ter alimento na mesa.
Sim, Glauber era cirúrgico: o colonizado é um escravo e só o deixa de ser quando segura armas. Assim como seus colegas do cinema novo, ele admirava o soviético Serguei Eisenstein, diretor de “O Encouraçado Potemkin”, um clássico do cinema que aborda uma revolta de marinheiros. Detalhe: em pleno stalinismo, a ditadura que instituiu na União Soviética uma estética que ficara conhecida como Realismo Socialista. Ou seja, só era possível fazer uma arte que enaltecesse Joseph Stalin.
Fora desse caldo revolucionário que levou o escritor Nelson Rodrigues a bater em sua máquina uma crônica-pérola na qual comparou “Terra em Transe” a um ideograma chinês posicionado de cabeça para baixo, Nelson confessou que gostou apenas de uma cena do filme, em que – segundo ele – “dão a palavra ao povo”. Já Hélio Pellegrino, amigo de Glauber, atestou que a obra era “um vômito triunfal”.
Para além de polêmicas como o libelo rodrigueano e o comentário mordaz de Pellegrino, o cinema novo mostrou os horrores do Brasil em plena ditadura civil-militar. Os fardados não eram exatamente sensíveis ao verem os problemas do país retratados pela arte. Então a saída era censurar a patota de Glauber.
E passados mais de 60 anos do estardalhaço provocado pelos cinemanovistas, o Telecine Play disponibiliza uma mostra em homenagem ao cinema novo. Assistam.