Marcus Vinícius Beck
Freudiano por excelência
Cinema
Canal Brasil homenageia o cineasta Walter Hugo Khouri com mostra. Filme rechaçado por Xuxa integra programação

Walter Hugo Khouri nas filmagens de ‘As Ilhas do Fogo’ - Foto: Reprodução/ Família Khouri
Arrisco a dizer que a definição melhor para o tipo de cinema feito por Walter Hugo Khouri é, por excelência, freudiano: a sexualidade enquanto instrumento para compreender a subjetividade humana é um dos recursos mais presentes na filmografia do cineasta paulista, autor de pérolas como “Eu” (1986), Convite ao Prazer” (1980), “As Feras” (1996), entre outras obras-primeiras do audiovisual brasileiro.
Em “Amor Estranho Amor”, a narrativa se desenvolve num flashback. Durante sua maturidade, Hugo visita o casarão no qual ocorreu sua iniciação sexual, ainda menino. Ele era filho de uma prostituta de luxo, interpretada por Anna, personagem de Vera Fischer, que trabalhava no puteiro sob as ordens de Laura (Íris Bruzzi). Isso num cenário pré-golpe do Estado Novo, enquanto os políticos mais importantes da República se engalfinhavam no mulherio e enchiam a cara com pileques.
Assim como em boa parte da obra de Khouri, aqui também há um elenco brilhante, cenas de sexo e mulheres lindas. Longe de ser um ponto negativo, óbvio. O que é importante destacar é que certas cenas soam um tanto artificiais, com diálogos ao largo de serem atrativos. Mas tudo no filme é sofisticado: críticos fazem ponta, os homens da trama são exuberantes, a trilha sonora assinada por Rogério Duprat é chique.
A exibição marca o fim de uma mordaça que Xuxa conseguiu arrastar na Justiça até 2018, quando ela enfim desistiu da ação. Hoje, conforme a apresentadora sugeriu em sua autobiografia “Memórias”, o público deve assistir ao filme para ter uma noção sobre o problema da exploração sexual infantil. “Tem gente que, quando quer me atacar, fala desse longa como sendo um filme pornô. Nada a ver”, afirmou ela, na obra.
De fato, a cena em que Tamara, vivida por Xuxa, tem relação sexual com o menino menor de idade soa esquisita e vulgar, mas isso não é marca do estilo de Khouri: o diretor brasileiro chegou a ser comparado a mestres como Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni, ambos considerados nomes seminais do cinema. Portanto, resigná-lo a um papel tão indecente não parece ser uma coisa muito justa.
Khouri sempre foi visto como um crítico ácido da burguesia. A Mostra em sua homenagem no Canal Brasil oferece um panorama sobre essa faceta dele de observador da sociedade e do capitalismo à brasileira. “Eu”, por exemplo, que também conta com atuação de Lucélia Santos e Christiane Torloni (la Torloni, vale ressaltar, ainda jovem) é um ensaio fílmico que mostra o estilo de vida dos endinheirados brasileiros pós-ditadura militar.
Claro que, em se tratando de um filme dirigido por Khouri, pessoas transando não poderiam deixar de ser rodadas. Coloco, com tranquilidade, esse filme entre os dez melhores já feitos no cinema brasileiro: vemos um longa que bebe na fonte da melhor reflexão sócio-política, e existencial, traçada pelo sueco Ingmar Bergman em produções como “Fanny e Alexander”, a obra-prima do cinema bergmaniano.
O restante da mostra dispõe de um panorama interessante acerca do conjunto da obra do cineasta brasileiro. A programação conta ainda com filmes como “Forever” (1990), coprodução estrangeira: a fita tem um astro internacional como Ben Gazzara. Vera Fischer, Ana Paula Arósio e Eva Grimaldi (atriz italiana que veio ao Festival de Gramado) completam o elenco. Arósio faz a filha em busca do mistério do pai (Gazzara). “Forever” tem seus momentos. Khouri ainda deve ser visto por nós.
Os outros dois títulos da mostra são “As Feras” (1996) e “As Deusas” (1972). São frutos de momentos distintos da carreira do cineasta paulistano. No primeiro, por exemplo, marido e mulher se envolvem com uma jovem psiquiatra. Seria uma ode ao menage? Provável. Mas eu gosto de pensar que a obra, cujo elenco tem Lilian Lemmertz, Kate Hansen e Mário Benvenutti é uma evocação – de novo – do cinema berganiano, sua referência-mor em pensar e fazer cinema cheio de provocações aos valores burgueses.
Em “As Feras”, penúltimo trabalho do brasileiro, há uma conversa com a linguagem teatral. Uma atriz se prepara, novamente, para interpretar uma personagem sedutora, mas o que era pra ficar designado a ficar no mundo cênico logo invade a vida da atriz, fazendo já de cara uma vítima: seu namorado, vivido por Nuno Leal Maia – não é à toa que o ator ironicamente foi chamado de o maior corno do cinema nacional, lembra de “Dama da Lotação”?
Para fechar a mostra, “Convite ao Prazer”, uma história que gira em torno do alter-ego do diretor. O protagonista, cineasta, chama um amigo para “provar” as mulheres que leva ao seu apartamento. Seu maior legado? Estabelecer uma visão sui generis sobre o desejo e sexualidade humana, além da angústia do homem inserido num capitalismo predatório e opressor. Assistir Walter Hugo Khouri, portanto, é essencial.