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Futebol libertário
Atualizado: 12 de abr. de 2020
35 anos
Democracia Corintiana transformou o esporte bretão nos anos finais da ditadura civil e militar

Slogan ‘Dia 15 Vote’ foi criado pelo publicitário Washington Olivetto com a benção do jornalista Juca Kfouri - Foto: Reprodução
Marcus Vinícius Beck
No início da década de 1980, a sociedade brasileira vivia os últimos anos de ditadura civil e militar. As liberdades individuais eram tolhidas. Rolava uma caretice fruto dos resquícios da barbárie provocada desde 1964 pelos trogloditas fardados que usurparam o poder a partir de um golpe apoiado pelos poderes econômico, midiático e religioso. Resistir era preciso: o rock tocava em alto e bom som nas rádios. As letras, telegráficas, descaducadas, porra-loucas e irreverentes, faziam a cabeça dos jovens. E num ambiente reacionário por natureza, um time paulistano revolucionou toda a estrutura do futebol brasileiro.
Fundado por operários no dia 1° de setembro de 1910, o Sport Clube Corinthians Paulista deu início a uma mudança que sacudiu não só o futebol, mas também a desgastada tirania brasileira. O folclórico e lendário dirigente Vicente Matheus deixou em abril de 1982 a presidência do Corinthians. Foi substituído por Waldemar Pires, que nomeou o sociólogo Adilson Monteiro Alves como diretor de futebol. Monteiro Alves, intelectual de orientação marxista e figura conhecida na esquerda paulista, adotou já de cara um estilo diferente e pouco comum: acabou com as práticas autoritárias e instituiu uma democracia direta.

Democracia Corintiana modificou as estruturas do futebol brasileiro nos anos finais da ditadura - Domicio Pinheiro / Estadão Conteúdo
As decisões do Departamento de Futebol passaram a ser feitas no voto. Quem eram os eleitores? Jogadores, integrantes da comissão técnica (massagistas e roupeiros) e diretores. As contratações, dispensas e decisões para concentração passavam por esse colegiado. “Quando você está preso, qual é o seu objetivo primordial quando ficar livre? Não é o teu trabalho. O importante é o final do trabalho. Pra nós era o contrário: o prazer era o jogo, a gente se preparava para o jogo, era uma entrega total”, recorda-se Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira, camisa 8 do Timão e capitão do time, em depoimento que está no documentário Democracia Preto e Branco. Assim era a autogestão corintiana.
“Quando você está preso, qual é o seu objetivo primordial quando ficar livre? Não é o teu trabalho. O importante é o final do trabalho. Pra nós era o contrário: o prazer era o jogo, a gente se preparava para o jogo, era uma entrega total” - Sócrates, ex-jogador e cérebro da Democracia Corintiana
Ao lado do atacante Walter Casagrande Júnior, jogador rebelde e fã de Led Zeppelin, Deep Purple e The Doors, e do lateral-esquerdo Wladimir Rodrigues dos Santos, politizado e membro do sindicato dos jogadores de São Paulo, Sócrates foi um dos idealizadores da Democracia Corintiana. Após uma campanha trágica nos campeonatos Paulista e Brasileiro de 1980 e 1981, a saída de Matheus deu fôlego ao time. A sacada era revolucionária e afrontosa: Washington Olivetto, publicitário de renome e torcedor fanático do Corinthians, criou a ousada – e inteligente – logo da Democracia Corintiana, estampando na camisa as frases "Diretas Já", "Eu quero votar para presidente" e "Dia 15 vote".
“Sócrates era uma raridade no mundo do futebol" - Renato Dias, jornalista e sociólogo
“Sequestrado pelo ex-guerrilheiro do Chile, Maurício Norambuena, Comandante Ramiro que quase explodiu o ditador Augusto Pinochet, em uma comitiva oficial, no ano de 1986, o publicitário Washington Olivetto, diretor de Marketing do Corinthians, é o responsável pela criação do conceito Democracia Corinthiana. Com dedos de Juca Kfouri”, narra o jornalista e sociólogo Renato Dias, pesquisador do que classifica como “a noite que durou 21 anos, a ditadura civil e militar no Brasil, de 1964 a 1985”. A ideia de Olivetto nasceu após um debate na PUC-SP, mediado por Kfouri, então diretor de redação da revista Placar, membro do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo e figura engajada na luta contra a ditadura.

Fausto Silva entrevista Sócrates, que usa camisa com finalidade política - Olívio Lamas/ Acervo O Globo
“Sócrates era uma raridade no mundo do futebol. Na ‘pátria de chuteiras’. Trata-se uma expressão formulada por Nelson Rodrigues. O imortal cronista torcedor do Fluminense, tricolor das Laranjeiras, como Daniel Aarão Reis Filho, historiador do Departamento de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF)”, sublinha o escritor, torcedor irrecuperável, na UTI (Unidade de Terapia Intensiva), do Vila Nova. “Sócrates participara dos comícios por eleições diretas para a Presidência da República. O pontapé para acabar com a ditadura civil e militar, que depôs, com um golpe de Estado, em 1964, o presidente da República, João Goulart, ex-jogador das categorias de base do Internacional”.
Futebol romântico
Em campo, a Democracia voava e jogava um futebol criativo, ofensivo e romântico. O Corinthians chegou às semifinais do Brasileiro de 1982 e foi campeão paulista no mesmo ano e no ano seguinte. De quebra, as dívidas foram quitadas e o alvinegro paulista conseguiu ainda fazer uma reserva de US$ 3 milhões. “O time jogava por música, dava gosto assistir a elegância de Sócrates, com seus passes de calcanhar que pareciam um tiro, deixando o companheiro na cara do gol quase sempre”, lembra o contabilista Odinir Tavares, corintiano desde a década de 1950, época em que o Timão era massacrado pelo Santos de Pelé.
“O time jogava por música, dava gosto assistir a elegância de Sócrates, com seus passes de calcanhar que pareciam um tiro" - Odinir Tavares, contabilista e torcedor corintiano
No entanto, a Democracia Corintiana começou a ruir com as campanhas fracas de 1984 e 1985. Conservador e encrenqueiro, o goleiro Emerson Leão, contratado com o voto do Doutor Sócrates em assembleia, dividiu o elenco: de um lado havia os apoiadores da Democracia, do outro aqueles que achavam que o movimento era uma tirania comandada por Sócrates, Casagrande e Wladimir. Além disso, o Doutor – que também era formado em medicina pela USP e tinha concepções marxistas - disse que se Emenda Dante de Oliveira fosse rejeitada pelo Congresso Nacional ele ia embora.

Slogan do movimento - Washington Olivetto
Dito e feito. Desiludido com os rumos da política brasileira, Sócrates aceitou a oferta da Fiorentina, da Itália, e mudou-se para a terra do marxista Antonio Gramsci. Outro nome de destaque da Democracia Corintiana, Casagrande foi transferido para o rival São Paulo e, do Morumbi, acertou com o Porto, de Portugal, onde participou do time que vencera a Liga dos Campeões da Europa. Com o trio desmantelado, o dirigente Vicente Matheus retornou para a presidência do Corinthians, o 4° cargo mais importante do Brasil, atrás apenas da presidência da República, governador e prefeito de São Paulo, segundo o folclórico cartola.
“O futebol transformou-se em uma das maiores indústrias de entretenimento do globo, com a movimentação de recursos estratosféricos” - Renato Dias, jornalista e sociólogo
Mesmo tendo se perpetuado no cargo, foi sob a administração de Matheus que o Corinthians conquistou o título brasileiro de 1990, com a regência do craque Neto, xodó da Fiel Torcida. No entanto, o mais marcante na trajetória do ex-presidente foi o fato dele ter tirado o clube do jejum de 23 anos, em 1977. Após o término da Democracia Corintiana, informa o jornalista e sociólogo Renato Dias, “surgiu o Clube dos 13”. “O futebol transformou-se em uma das maiores indústrias de entretenimento do globo, com a movimentação de recursos estratosféricos”, lamenta. Mas que a Democracia Corintiana foi um sopro de esperança, foi.
Saiba mais sobre a Democracia Corintiana
‘Democracia Preto e Branco’
Com direção do cineasta Pedro Asbeg, o filme retrata os anos de Democracia Corintiana. O documentário conta com depoimentos de Adilson Monteiro Alves, Juca Kfouri, Sócrates, Casagrande, entre outros personagens do movimento. Narrado pela cantora e corintiana Rita Lee, a obra fala ainda sobre o rock nacional, trilha sonora dos jovens dos anos 80.
‘A Democracia Corinthiana: práticas de liberdade no futebol brasileiro’
Tese de doutorado defendida pela sociólogo José Paulo Florenzano na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), o livro reconstrói o período da Democracia Corintiana, com matérias publicadas em jornais, revistas e entrevistas com personagens da ocasião. Florenzano aborda também as críticas da reacionária imprensa esportiva paulistana, que via o movimento como uma “balbúrdia”.
Documentário 'Democracia em Preto e Branco' foi produzido pela ESPN - Youtube/ Reprodução