Marcus Vinícius Beck
Hoje o céu está tão triste
Atualizado: 14 de mai. de 2021
Obituário
Mestre da soul music, cantor e compositor Cassiano sai de cena e deixa canções eternizadas na história da música popular brasileira

Capa do disco 'Apresentando Cassiano' - Foto: Reprodução
Hoje o céu está tão triste (vai chuva): morreu aos 77 anos, em decorrência da covid-19, o cantor e compositor Genival Cassiano dos Santos, artista fundamental na história da soul music no Brasil. Ele estava internado desde abril no Hospital Estadual Carlos Chagas, em Marechal Hermes, na Zona Oeste do Rio de Janeiro.
Autor das músicas “Primavera” e “Eu Amo Você”, sucessos eternizados pelo vozeirão de Tim Maia, Cassiano se tornou conhecido pelo vocal singular que lhe credenciou como um dos principais expoentes do soul no Brasil. No entanto, abandonou precocemente a carreira após ser diagnosticado no final dos anos 1970 com tuberculose.
Antes de ser acometido pela enfermidade, o artista emplacou músicas de sucesso em trilhas sonoras de novelas produzidas pela TV Globo na década de 70. Se o fôlego fazia do canto um suplício, a música marcou presença na vida dele até o final: seguiu se apresentando como instrumentista e sua discografia tem dois LP 's com o grupo Os Diagonais, além de quatro como solistas e outras três coletâneas.
Mas o melhor é seguramente “Apresentamos Nosso Cassiano”, lançado pela gravadora Odeon em 1973. A essa altura, Cassiano já havia sido gravado por Tim, porém seguia no anonimato ao mesmo tempo em que era reverenciado por compositores em função da musicalidade singular, o que se viu na época do grupo de samba-soul-jazz Bossa Trio, cujo som foi a gênese de Os Diagonais.
Junto com o irmão Camarão e Hyldon, o mestre do soul ralava num Rio de Janeiro que respirava música em cada esquina. Não à toa, quando saiu “Os Diagonais”, em 1969, impressionou ao mostrar uma sonoridade pioneira que mesclava a batucada do samba do morro carioca com o groove dançante do funk de James Brown. Muito além dos padrões daquele tempo, com harmonias complexas dignas de um cara brilhante.
Ou, para ser mais exato, digno um gênio magistralmente criativo e pulsante: “É Isso Aí”, “Já”, “Minister”, “Não Fique Triste”, “Uma Lágrima, e “Eu, Meu Filho e Você” sintetizam essa qualidade musical. No repertório que integra o disco, Cassiano assinou sete faixas. “Me Chame Atenção” é fruto de uma parceria com Renato Brito, enquanto “Calçada” e “Cedo Ou Tarde” é creditada a ele e à mineira Suzana Tostes.
Depois, Cassiano viu sua pupila Sandra de Sá seguir os passos do soulman. É a consequência natural de um artista que não teve medo de inovar. Sem esquecer, claro, desse som que faz tão bem ao ouvido quanto a sinfonia dos corpos numa pista de dança. Mas essa é outra história, para um momento mais apropriado.
'A Lula e Eu' se tornou uma das músicas mais famosas de Cassiano
Voltando ao xis da questão: o inventivo artista ainda não decolara nas rádios. Suas canções, reverenciadas pelos músicos, seguia no ostracismo. Até que, em 1975, veio o estouro de norte a sul do Brasil com singles matadores, como a “A Lua e Eu” e “Coleção”, cujos versos “caminhando pela estrada/ eu olho em volta/ e só vejo pegada” estão fixados nos tímpanos brasileiros. E que bom, naturalmente.
Boa parte da explosão se deve ao fato de a música integrar na trilha sonora da novela “Locomotivas”. Enfim conhecido, o LP “Cuban Soul” (1976) saiu e, sem demorar, virou a grande obra de Cassiano. A musicalidade, aliada à voz suave, faz de composições como “Salve Essa Flor” um libelo à dor de cotovelo.
E, bem, os versos não deixam dúvidas: “de um jardim sem cor/ nasce uma flor que vivo só/ vento amigo tem/ por essa flor amor maior”. Mas, sabe como é, as gravadoras queriam dar pitacos em seu trabalho, talvez torná-lo um pastiche igual aos demais LP´s do mercado.
Cassiano, logicamente, não aceitou isso. Nem a gravadora, na verdade.
Dois anos depois, a CBS taxou o que seria seu quarto disco como difícil, numa tentativa de mudar sua singularidade sonora para embranquecê-la. Nada fora dos padrões: os empresários da indústria fonográfica (ou seria ‘pornográfica’, para evocar o jornalista e produtor musical Ezequiel Neves?) estavam receosos de que o LP seria um fracasso em termos de venda.
Paralelo a essas intercorrências, a saúde de Cassiano dava os primeiros sinais de que estava fragilizada. Ele ficou fora dos holofotes até 1984, porém o próximo disco sairia apenas em 1991. “Cedo Ou Tarde” marcaria também o término de um dos maiores talentos da soul music brasileira, fazendo com que seus álbuns sejam objetos de culto dos fãs que desejam compreender como foi o nascimento do soul no Brasil.
Há também a possibilidade de ouvir Cassiano nas plataformas digitais, com um áudio limpo, sem o ruído charmoso do vinil. Mas, cá pra nós, é isso que faz toda a diferença.
Nascido na cidade de Campina Grande (PB) no dia 16 de setembro de 1943, Cassiano foi morar no Rio ainda jovem, quando virou um admirador da obra do bossanovista João Gilberto, autor da pérola "Chega de Saudade". O músico se tornou uma espécie de Otis Redding brasileiro temperado no caldo da cornitude de Lupicínio Rodrigues. Não é pouca coisa, não.
Em tempo: com Genival Cassiano dos Santos desaparece um dos últimos gênios da soul music. Definitivamente, “toda vez que eu olho/ toda vez que eu chamo/ toda vez que eu penso/ em lhe dar/ o meu amor/ meu coração/ pensa que não será possível”. Hoje o céu está tão triste.