Marcus Vinícius Beck
Hunter Thompson e os delírios de um jornalismo porra-louca
Atualizado: 23 de fev. de 2021
Ensaio
Geralmente pouco sedutor e bastante desinteressante, o jornalismo – enquanto narrativa do real inserida numa sociedade capitalista – segue sendo praticado com textos engessados

Ilustração de Ralph Steadman abre 'Medo e Delírio em Las Vegas' - Foto: Ralph Steadman
Foi em meados da década de 2010, durante uma bebedeira na casa de um amigo ainda nos tempos em que eu morava em Ponta Grossa, no interior do Paraná, a primeira vez que ouvi falar no nome de Hunter S. Thompson. Tinha uns 15, 16 anos e estava mergulhado no meu próprio medo e delírio. Um romance hilário e inteligente de Thompson, “Diário de Um Jornalista Bêbado”, rodava de mãos em mãos e despertou minha curiosidade, enquanto eu pitava um baseado gigantesco que passava de um lado para o outro e sorvia goles galopantes de cerveja.
Você deve estar se perguntando por que diabos vou começar este garrancho ensaístico evocando uma delirante memória minha sobre um jornalista porra-louca. Ora, me deixe explicar, quem sabe assim não melhora meu lado: o sujeito foi um dos idealizadores do Jornalismo Gonzo. Ele chutou com os dois pés as normas convencionais de se fazer reportagem, desafiou regras e tretou com seus chefes nas redações nas quais trabalhou. Sempre chegava com uma cerveja em mãos e fumando sem parar com sua piteira à moda bluesman do delta Mississipi dos anos 40.
Preciso elencar mais algum motivo para tê-lo como mestre?
Ok: então, aos fatos. O livro-reportagem “Hell´s Angels”, lançado em 1967, se tornou uma espécie de bíblia ao retratar sociológica e antropologicamente a gangue de motoqueiros homônima, responsável por fazer a segurança de bandas como Rolling Stones e Jefferson Airplane na década de 1960 durante os shows delas em solo estadunidense. Na obra, o repórter materializou de forma radical a ideia de violência como algo ligado ao Tio Sam, em um texto furioso e emocionante.
É importante dizer, contudo, que os motoqueiros não eram exatamente bem quistos pela opinião pública: os jornais os viam como felinos ferozes de grande porte à procura da presa para encher a barriga. Os relatos publicados espalhavam medo, e isso não passava longe de ser uma invenção da Galáxia de Gutemberg, uma vez que onde quer que eles fossem a porrada rolava solta.
Com o objetivo de mostrar como o grupo se comportava e quais eram suas crenças, Thompson chegou a conviver com os motoqueiros por cerca de dois anos. Em trecho da obra, ele afirmou que durante a investigação que daria origem ao livro não sabia se estava fazendo uma matéria jornalística sobre os temidos Hell´s Angels ou se havia virado integrante do grupo. “Eu havia me tornado tão envolvido com os foras da lei que não tinha mais certeza se eu estava pesquisando sobre os Hell´s Angels ou se estava sendo lentamente por eles absorvido”, pontuou, no livro.
No final, quando os foras da lei descobriram que ele era jornalista, levou duas surras, sendo que uma delas o levou a um hospital à beira da morte. A outra foi motivada por descontentamento dos motoqueiros acerca de um artigo que escrevera em uma revista de circulação em todo o território norte-americano. “No Dia do Trabalho de 1966, abusei um pouco da sorte e apanhei feio de quatro ou cinco Angels que pareciam achar que eu estava me aproveitando deles. Um desentendimento sem muita importância se tornou muito sério de repente”, narra o escritor.
Dessa zoada cabeça saiu o estalo de criar um novo estilo de reportagem, porém “um estilo que acabou virando um total fracasso” – como ele se referiu ao Gonzo em um artigo que compõe a obra "Grande Caçada Aos Tubarões: Histórias Esquisitas De Um Tempo Esquisito”, lançado no Brasil pela Conrad, em 2004. Era um jeito de fazer jornalismo inspirado na frase do escritor realista americano William Faulkner: “a pior ficção sempre foi mais verdadeira do que qualquer jornalismo. E os bons jornalistas sempre souberam disso”.
Sim, o exercício jornalístico que reivindica para si o monopólio de retratar a realidade munido da verdade é, na realidade, o oposto daquilo que os chefes gritam nas redações: a reportagem passa por seguidos crivos durante o fechamento, tornando quase impossível se apropriar do trono de ser a voz da verdade. Nesse sentido, Isaac Asimov parece ser mais honesto que as aspas enfiadas na boca de um personagem para dar credibilidade à reportagem ou para gerar a manchete.
Thompson era um chapado, mas reduzi-lo a isso é uma desonestidade. O ilustrador Ralph Steadman, responsável por fazer os desenhos psicodélicos de “Medo e Delírio em Las Vegas”, dizia que o colega tinha enorme fôlego para apurar suas matérias. Em artigo publicado na revista Piauí na edição de maio de 2008, ele conta detalhadamente que ambos estavam em Washington durante o caso Watergate (escândalo político que levou à renúncia do ex-presidente republicano Richard Nixon, em 1972) e Thompson apurava os fatos de madrugada após beber por horas a fio. “Era incansável”, comentou o ilustrador, em um texto escrito numa linguagem porra-louca.
Um ano antes, o repórter fora designado a cobrir uma corrida de motociclistas em Kentucky, sua terra natal e conhecida por ser conservadora e terrivelmente cristã – o texto foi publicado em junho de 70 na revista Scanlan's Monthly. Intitulado de “O Derby de Kentucky É Degenerado e Depravado”, a reportagem tecia críticas ao american way of life, que estava afundado na Guerra do Vietnã, além de destrinchar os modos de vida daquele estado do sul americano infestado de fanáticos armamentistas e barrigudos fãs de guerra: é o tipo de gente que votou no republicano Donald Trump. É o tipo de gente, aliás, que historicamente vota nos republicanos.
No ano seguinte, lançou “Medo e Delírio em Las Vegas” e sacramentou o estilo que lhe consagrou como repórter, ainda que muitos duvidem da veracidade dessa história repleta de calotes em hotel, consumo desenfreado de drogas e loucuras dos mais diversos tipos. Ou seja, definir Thompson como um demente ou delinquente não me parece ser exatamente o tipo de coisa que lhe deixaria chateado ou feroz: suspeito, na condição de admirador de uma narrativa que modificara as estruturas do jornalismo, que ele até simpatizaria com isso.
E, para que todas estas palavras possam fazer algum sentido, é preciso lembrar que o Jornalismo Gonzo surgiu na segunda metade da década de 1960.
No auto-falante, Jefferson Airplane, The Doors, Janis Joplin, Jimi Hendrix e Bob Dylan produziam a trilha sonora dos descontentamentos de uma juventude condenada à morte na Guerra do Vietnã. Uma década antes, a literatura havia se transformado com os escritos da Geração Beat, a partir de obras tecladas por Jack Kerouac, Lawrence Ferlinghetti, William Burroughs e Allen Ginsberg, críticos da sociedade de consumo do Tio Sam. O cinema, enquanto instrumento de conscientização, respirava revolução com os filmes de Godard e Truffaut.
A década de 1960 também foi o desabrochar de gente como Tom Wolfe, Gay Talese, Truman Capote e Norman Mailer, que misturavam técnicas literárias (onomatopéias, metáforas...) ao texto jornalístico. Capote era um romancista que precisava encontrar algum motivo para seguir escrevendo. Talese tinha experiência como repórter do New York Times, mas queria contar histórias que levariam mais tempo para serem apuradas. Mailer era escritor, mas triunfou no jornalismo perfilando o boxeador Muhammad Ali. E Wolfe – tido como uma espécie de papa do New Journalism – havia terminado seu doutorado e estava entusiasmado com o realismo.
Thompson, nunca é demais lembrar, foi muito além dos seus colegas. Ao invés de simplesmente retratar os fatos com a frieza do distanciamento e da impessoalidade, na terceira pessoa, como pregam os preceitos da literatura realista de Émile Zola, Honoré de Balzac e Gustave Flaubert, ele acreditava que conseguiria imprimir maior verdade à narrativa se conseguisse inserir-se no centro dos acontecimentos, isto é, virar o próprio personagem da trama. Para isso, dizia o jornalista gonzo, seria necessário o repórter ter a desenvoltura de um ator, os olhos de Henri Cartier-Bresson e os culhões de um boxeador que encara seu rival no ringue antes do combate...
Em “Radical Chique e o Novo Jornalismo” (1970), obra de ensaios sobre o chamado Novo Jornalismo, Wolfe disse que a melhor obra lançada no ano de 1967 foi “Hell's Angels”, “de um obscuro jornalista de São Francisco”. O livro-reportagem continha todos os mandamentos que os novos jornalistas seguiam, mas com um componente que o diferia dos demais: o texto era tão enfurecido quanto os anarquistas na Guerra Civil Espanhola, com uma linguagem radical e um narrador que deixava de ser um mero observador da notícia para protagonizar o fato reportado.
Mais porra-louca que os seus colegas novos jornalistas, Hunter Thompson reconhecia que o ‘terno branco’ (referindo-se a Tom Wolfe e seu indefectível figurino) escrevia magistralmente bem, mas o criticava por “ser amigo de gente chata, o que o impedia de fazer a imersão ao fato”. Gente chata, presumo, deve ser Ken Kesey e os Festivos Gozadores... A verdade é que, se Wolfe despejou uma cartela de LSD sob o jornalismo com “O Teste do Refresco do Ácido Elétrico”, Thompson o colocou na lista dos mais procurados da polícia americana.
Nas décadas seguintes, após publicar na Rolling Stone a doidona cobertura das eleições de 1972, o jornalista gonzo passou a viver à sombra do que produzira em seus anos áureos. Chegou a colaborar ainda em revistas de grande circulação nos EUA, como a Playboy, escrevendo matérias com cunho ácido e com o seu primoroso estilo sarcástico, mas nada que chegasse a altura do que escreveu durante os anos 1970: Thompson estava, de certo modo, cansado dos holofotes e de saco cheio de ser o cara maluco que sempre fazia alguma merda – isso pode ser visto no documentário “Gonzo: Um Delírio Americano”, com narração do ator Johnny Deep e direção de Alex Gibney.
Em 2005, aos 68 anos, resolveu dar um fim em sua vida. Atirou com uma Magnum 44 contra a própria cabeça. Antes de cometer suicídio, Thompson deixou uma carta na qual detalhava os motivos pelos quais o levou a se matar. “Chega de jogos. Chega de bombas. Chega de passeios. Chega de natação. 67 anos. São 17 acima dos 50. 17 mais dos que necessitava ou queria. Aborrecido. Sempre grunhindo. Isso não é plano, para ninguém. 67. Estás ficando avarento. Mostra tua idade. Relaxe. Não doerá”, escreveu, antecedendo o pow, pow, pow do revólver, com o telefone ao lado.
Como disse o enigmático e assustador Sr. Kurtz, em “Coração das Trevas” (1899), romance de Joseph Conrad (1857-1924): “O horror! O horror!... exterminem todos os brutos!”.
Chegou a hora do Gonzo, não há como escapar. O jornalismo se transformou num produto descontextualizado sobre a realidade, pouco sedutor e muito burocrático: afinal, quem consegue se deleitar com um texto pouco chamativo e atraente? Os escribas marcham nas paredes do lead, e não salivam a letra da peste e da política de milicianos, sobre a qual o Brasil vem se perdendo desde o golpe de 2016. Os jornalistas que aqui ficam, descontantes em bater continência para a mentira da pirâmide invertida, tem uma saída: reportar humanamente os fatos.
Marcus Vinícius Beck, jornalista e escritor. Editor de Cultura do Jornal Metamorfose e autor do livro-reportagem gonzo “Diário Subversivo: Dias de Embriaguez, Utopia e Tesão"
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