JM
Implicações da política identitária na práxis da esquerda
Análise Política
Em defesa de uma perspectiva de ação interseccional no enfrentamento ao conservadorismo
No presente texto, partirei da leitura e de discussões feitas por três intelectuais: Jodi Dean, Nancy Fraser e Asad Haider. Ambos estarão pensando a relação entre identidade e ação política, especialmente no contexto norte-americano, mas também oferecendo importantes apontamentos para pensar essa questão no atual cenário brasileiro.
Ao longo da segunda metade do século XX, as categorias de inclusão social e exclusão foram politizadas e mobilizadas. Movimentos sociais organizados ao longo de aspectos relacionados a raça, sexo, etnia e sexualidade transformaram radicalmente a vida cotidiana. Como resultado do trabalho crítico desses movimentos, bem como o consequente declínio do estado de bem-estar social e empoderamento do neoliberalismo, as identidades raciais, sexuais e étnicas são menos fixas, menos estáveis. A categoria "nós" parece ter sido permanentemente questionada. Segundo Jodi Dean, a variedade de identidades disponíveis e a mutabilidade que caracteriza as relações dos sujeitos contemporâneos com suas identidades, tornam essas extremamente vulnerável.
Além disso, reduz-se o discurso político para testemunhar o sofrimento das vítimas e, ao fazer isso, se inverte as reivindicações de poder e subverte o espírito ativista desses mais recentes movimentos sociais de esquerda (de caráter identitário). Jodi Dean colocou que tal prática gera uma interpelação: para falar, eles têm que demonstrar como são prejudicados e vulneráveis, como são fracos, inadequados ou sofridos. Para muitos movimentos da esquerda, a atração da posição da vítima é dupla: sempre é moralmente correto e nunca politicamente responsável. Complementando: as perdas inevitáveis do neoliberalismo são deslocadas de problemas sistêmicos, que precisam de soluções coletivas, e se concentram na imagem fantástica do criminoso individual a ser aprisionado, punido, torturado, escrachado e até mesmo morto.
Várias vertentes dentro da esquerda pouco ou nada fazem para desafiar essa “hegemonia da vítima”. Em vez disso, são comuns o apoio e o encorajamento da condição atual em que aqueles que não falam como vítimas não possuem legitimidade. O valor se desloca para quem diz e não para o que se diz. Tendo como base o pensamento de Judith Butler, Dean não exclui a necessidade da existência de momentos para condenação e para a denúncia, mas adverte contra esses modos de julgamento. Existe diferenças entre condenação e crítica, pois a condenação é situacional.
Outro ponto que merece atenção no que resulta na atual atuação da esquerda são as limitações da democracia como um ideal político contemporâneo, o horizonte ultimo possível. Assim, a chamada despolitização é usada como desculpa pela esquerda para dizer que sabem que a ação coletiva é possível teoricamente, mas que não acreditam que ela exista de fato. Falha de responsabilidade da esquerda. A incapacidade da política democrática para produzir soluções viáveis para problemas sociais e econômicos ressoa com a celebração do indivíduo no capitalismo atual. É a individualização da política em "estilos de vida". Daí o foco se torna a própria performance.
O problema político real é que a esquerda aceita o capitalismo, ela concedeu o direito sobre a esfera econômica. Mas, os conservadores não estão buscando respostas individualizadas ou terapêuticas. Eles querem a intervenção da lei. Eles levantam suas reivindicações para o status de universal. Eles apelam para valores como decência, moral, ordem e civilidade como princípios e ideais universalmente válidos. Longe de se democratizar, a formação ideológica contemporânea do capitalismo fetichizaria a fala, a opinião e a participação. Daí a esquerda política ter se reduzido a uma democracia estatal, com um grande foco apenas em eleições.
Segundo Jodi Dean, quando a esquerda ecoa injunções à individualidade, quando enfatiza perspectivas únicas e experiências pessoais, ela acaba funcionando como veículos para a ideologia do atual capitalismo; logo, afasta-se da coletividade da qual ela mesma depende. Porém, quanto mais o indivíduo, esse sujeito fictício do capitalismo, é glorificado, mais tenso e impossível ele se torna. É uma espécie de individualismo autodestruído.
Aponta-se que no final da década de 1980, a dissolução do estado de bem-estar e o surgimento das tecnologias de informação e, mais tarde, o colapso do bloco soviético, exigiram a reconstrução da esquerda. A questão, então, era como essa esquerda reconstruída seria. E ela acabou sendo marcada por “individualismo progressista”. O objetivo da ação coletiva seria satisfazer as necessidades individuais. Para se adaptar aos novos tempos, a esquerda tem que se parecer com a direita. Nesse contexto, a política de identidade deve estar no centro de uma política transformadora, porque dá uma sensação de diferença, das muitas identidades oferecidas na, e pela, cultura contemporânea. Assim, a experiência vivida seria a perspectiva exercida sobre a política.
O que se esquece é que a injunção do capitalismo para individualizar é a sua arma mais poderosa. Vivemos em uma época em que se sobrecarrega o indivíduo de responsabilidades e expectativas. Assim, a coletividade é indesejável porque se suspeita de excluir possibilidades, apagar a diferença e impor a disciplina. Somos tão diferentes, tão singularizados em nossas experiências e ambições, tão investidos na primazia de um conjunto de táticas sobre o outro, que não podemos nos unir em uma luta comum. Na melhor das hipóteses, podemos encontrar afinidades momentâneas e coalizões provisórias, a exemplo das manifestações de junho de 2013 no Brasil.
Há suposições de que a coletividade é tanto indesejável quanto impossível e isso vem de uma suposição ainda mais insidiosa: a de que a política envolve o indivíduo. O resultado: conformismo. Segundo Nancy Fraser, o carisma emancipatório dos novos movimentos sociais acabou por encobrir o ataque a seguridade social. Para ela, a mentalidade liberal-individualista reafirmou-se, encolhendo imperceptivelmente as aspirações da esquerda. O resultado foi um neoliberalismo progressista.
Essa autora também aponta que apesar de explosões periódicas e de curta duração, como o Occupy Wall Street em 2011, não há uma presença duradoura da esquerda nos anos recentes. Tampouco existia qualquer narrativa abrangente desta que pudesse ligar as queixas legítimas dos partidários de Trump, por exemplo, com uma crítica maciça da financeirização, por um lado, e com uma visão antirracista, antissexista. anti-hierárquica e emancipatória, por outro. Acrescente-se a isso, o fato de que os vínculos potenciais entre o trabalho e os novos movimentos sociais foram, em grande medida, abandonados. Mais uma vez é importante ressaltar que tais apontamentos não intentam silenciar preocupações no que tange o racismo, o sexismo e etc. Pelo contrário, significa, como apontou Fraser, mostrar como essas antigas opressões históricas encontram novas expressões e fundamentos hoje.
O exposto acima encontra paralelo com a defesa de Asad Haider da política identitária ter dividido a esquerda. Para esse autor, o que pretendia ser uma estratégia revolucionária para derrubar opressões entrecruzadas, acabou por tornou-se uma palavra de ordem nebulosa e cooptada pelos diferentes polos do espectro político. Ele defende que a política identitária contemporânea é uma neutralização dos movimentos contra a opressão racial, por exemplo, e não uma progressão em relação à luta de base contra o racismo, tendo em vista que, antes as visões revolucionárias do movimento de libertação negra viam o racismo e o capitalismo como dois lados da mesma moeda, mas agora foram substituídas por um conceito restrito e limitado de identidade. Esta última, foi abstraída das nossas relações materiais. Isso se deve, segundo Haider, porque a política vem se reduzindo à performance identitária.
A linguagem da identidade e da luta desses vários grupos se tornou individualizada e unida ao progresso individual de uma classe política ascendente e de novas elites econômicas que haviam sido excluídas do centro da sociedade por opressões, mas passaram a ter uma via de entrada na esfera econômico (o caso abordado por Asad Haider são os negros nos EUA). Haider então aponta para a necessidade de uma retomada do “universalismo insurgente”, onde os grupos oprimidos se posicionam como atores políticos, não como vítimas passivas. Se temos uma organização ou um movimento dominado por homens brancos, por exemplo, isso é um problema político e estratégico; então, se ele for tratado como um problema moral, não haverá como resolvê-lo.
O quadro atual é que a esquerda parece assistir sentada as recentes ondas de conservadorismos. O intuito é demonstrar como as políticas identitárias, mais especificamente o uso do lugar de fala em ambientes militantes, contribuiu para esse quadro de estagnação. Isso ocorre, em grande medida, pela mudança no “eixo gravitacional” da ação política da esquerda, que passa a dar ênfase no indivíduo e não mais na coletividade. O sujeito revolucionário nesse contexto perde o caráter universal, as lutas se especificam e dificultam cada vez mais a possibilidade de união entre os vários grupos que compõem a esquerda. Tanto ela como a direita aceitaram o capitalismo como o horizonte ultimo possível da política, deixando de lado seus antagonismos nessa esfera
Esquece-se que o capitalismo não é pura e simplesmente um sistema econômico, ele é também um modelo civilizatório. E como tal, não se caracteriza somente pela presença de opressões, mas também por uma acentuada exploração (centrada no mundo do trabalho e que sustenta, em grande medida, o próprio sistema). Uma exploração do 1% mais rico da população mundial sobre os outros 99%. Com isso, combater opressões é essencial, mas isso por si só não elimina necessariamente a exploração. E o combate unicamente focado na exploração, não resolve as várias opressões pautadas pelas questões em torno da identidade. Esse 1% não detém apenas o comando da esfera econômica (meios de produção), mas também dominam outras esferas da vida social, como o direito, a religião, cultura, ciência, etc. Os padrões de beleza, por exemplo, construídos e disseminados na cultura de massa, via Industria Cultural, são originários desse restrito grupo na ponta da pirâmide e não da base. É preciso um exercício de reflexão e ação interseccional.