Júlia Moura
Insaciável sede pela existência: a autoria feminina negra
Literatura
Humanidade negada e subjetividade ceifada. O que a hegemonia racista e misógina por anos considerou uma criatura desalmada, hoje, possui em seu peito a potência humana necessária para o incêndio da revolução. É o anseio pela voz emudecida.

Conceição Evaristo, escritora. Foto: Isabela Kassow | Setembro 2017
A autoria feminina negra perpassa por inúmeras nuances de sensibilidade, que tocam na dor, no fogo, na negação de afetividade e principalmente, no pesar existente na negação da humanidade presente em um corpo negro. A carne mais barata do mercado é a carne negra, e a letra mais oculta pela crítica, também. Nesse panorama, a arte se debruça em questões sociais ideológicas para jogar luz em uma representação da violenta realidade que cerca, desde o nascimento, as vidas emudecidas em manutenção de estruturas nocivas à básica dignidade humana, nocivas ao direito à existência. Logo, para além disso, a literatura contemporânea, feminina e negra, se atenta à mesma proposta e procura materializar em sua tradição uma voz que ecoa contra a hegemonia branca e patriarcal.
Entre os grandes nomes da autoria feminina negra, no Brasil, além de Carolina Maria de Jesus, autora de “Quarto de despejo”, destaca-se Conceição Evaristo, romancista, poeta e contista, homenageada como Personalidade Literária do Ano pelo Prêmio Jabuti 2019 e vencedora do Prêmio Jabuti 2015. Conceição Evaristo também é professora e pesquisadora na área de literatura comparada. Suas obras carregam forte denúncia das opressões raciais e de gênero, mas também se voltam para a recuperação da ancestralidade da negritude brasileira, propositalmente apagada em meio as configurações escravistas de um país construído na base da opressão.
Sua estreia na literatura aconteceu no ano de 1990, quando seis de seus poemas foram incluídos no volume 13 da coletânea Cadernos Negros, publicação literária periódica que teve início em 1978, com o intuito de veicular a cultura e a produção escrita afro-brasileira, seja na forma da prosa, seja na forma da poesia.
Em 2011, Conceição Evaristo lançou o volume de contos Insubmissas lágrimas de mulheres, em que, se debruça sobre o universo das relações de gênero num contexto social marcado pelo racismo. A obra se apresenta com um manifesto voltado para a afeição feminina, por tocar no que é essencial, no que move, no que aproxima e une mulheres e, em especial, mulheres negras.Em 2017, Conceição Evaristo foi tema da Ocupação do Itaú Cultural de São Paulo. Em 2019, Conceição Evaristo é a grande homenageada da Bienal do Livro de Contagem.
Em sua poesia, de maneira lírica e política, Conceição Evaristo denuncia e narra as infindáveis opressões carregadas em ancestralidade. A dor que ressoa em gerações e de traduz na angústia de dias ainda sombrios, mas se revolta em esperança de um rugido estrondoso, de passado, presente, e futuro.
Vozes-Mulheres
A voz de minha bisavó
ecoou criança
nos porões do navio.
ecoou lamentos
de uma infância perdida.
A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e fome.
A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
O eco da vida-liberdade.
(Poemas de recordação e outros movimentos, p. 10-11).
A sensibilidade de Conceição Evaristo é também atravessada pela condição de mulher negra em toda sua arte, em toda sua dor, e em toda sua potência. Sua atenção revoltosa exposta em versos incisivos coloca-se como ferramenta essencial para a compreensão e elucidação feminina frente à violência racista e patriarcal, que nos acompanha desde o primeiro até o último fôlego.
Uma gota de leite
me escorre entre os seios.
Uma mancha de sangue
me enfeita entre as pernas.
Meia palavra mordida
me foge da boca.
Vagos desejos insinuam esperanças.
Eu-mulher em rios vermelhos
inauguro a vida.
Em baixa voz
violento os tímpanos do mundo.
Antevejo.
Antecipo.
Antes-vivo
Antes – agora – o que há de vir.
Eu fêmea-matriz.
Eu força-motriz.
Eu-mulher
abrigo da semente
moto-contínuo
do mundo.
Maria da Conceição Evaristo
Em paralelo à produção de Conceição Evaristo, é possível tecer uma relação direta com um dos mais importantes e memoráveis discursos do feminismo negro em intersecção entre o sufrágio feminino e os direitos dos negros. Sojourner Truth, símbolo de luta, foi uma das mais célebres oradoras em defesa dos direitos das mulheres negras nos Estados Unidos. Foi vendida em um leilão aos nove anos, junto com um rebanho de ovelhas por 100 dólares e escravizada até o ano de 1826. Seu discurso foi proferido como uma intervenção na Women’s Rights Convention em Akron, Ohio, Estados Unidos, em 1851. Em uma reunião de clérigos onde se discutiam os direitos da mulher.
E eu não sou uma mulher?
“Muito bem crianças, onde há muita algazarra alguma coisa está fora da ordem. Eu acho que com essa mistura de negros (negroes) do Sul e mulheres do Norte, todo mundo falando sobre direitos, o homem branco vai entrar na linha rapidinho.
Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda para subir em carruagens, e devem ser carregadas para atravessar valas, e que merecem o melhor lugar onde quer que estejam. Ninguém jamais me ajudou a subir em carruagens, ou a saltar sobre poças de lama, e nunca me ofereceram melhor lugar algum! E não sou uma mulher? Olhem para mim? Olhem para meus braços! Eu arei e plantei, e juntei a colheita nos celeiros, e homem algum poderia estar à minha frente. E não sou uma mulher? Eu poderia trabalhar tanto e comer tanto quanto qualquer homem – desde que eu tivesse oportunidade para isso – e suportar o açoite também! E não sou uma mulher? Eu pari 3 treze filhos e vi a maioria deles ser vendida para a escravidão, e quando eu clamei com a minha dor de mãe, ninguém a não ser Jesus me ouviu! E não sou uma mulher?
Daí eles falam dessa coisa na cabeça; como eles chamam isso… [alguém da audiência sussurra, “intelecto”). É isso querido. O que é que isso tem a ver com os direitos das mulheres e dos negros? Se o meu copo não tem mais que um quarto, e o seu está cheio, porque você me impediria de completar a minha medida?
Daí aquele homenzinho de preto ali disse que a mulher não pode ter os mesmos direitos que o homem porque Cristo não era mulher! De onde o seu Cristo veio? De onde o seu Cristo veio? De Deus e de uma mulher! O homem não teve nada a ver com isso.
Se a primeira mulher que Deus fez foi forte o bastante para virar o mundo de cabeça para baixo por sua própria conta, todas estas mulheres juntas aqui devem ser capazes de conserta-lo, colocando-o do jeito certo novamente. E agora que elas estão exigindo fazer isso, é melhor que os homens as deixem fazer o que elas querem.
Agradecida a vocês por me escutarem, e agora a velha Sojourner não tem mais nada a dizer”.