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  • Foto do escritorMarcus Vinícius Beck

Laroyê, seu Zé

Botequim Literário

O poeta andando no bonde de Santa Teresa, outubro de 2020 - Rio de Janeiro. Foto: J.Lee/Arquivo


Abri a garrafa de Presidente, o melhor conhaque para os descapitalizados do mundo, e preparei uma dose, com uma ou duas pedrinhas de gelo, buaaaaaa, buaaaaa. “Minha cigana prefere rum, mas ela também gosta de conhaque”, alertou-me Maia.


O ponto do relógio marcava 16h31 e eu estava encarando o batuque sinfônico do verbo prestar a dar cabo das ideias mirabolantes que povoavam meu cocuruto. Entre um trago de Chesterfield, uma frase equivocada enviada para o lixo eletrônico e um trago no conhaque, o auto-falante reproduzia no último volume a música “Canto de Ossanha”, e o violonista Baden Powell dedilhava seu violão: era loucamente prazeroso.


“Que eu não sou ninguém de ir em conversa de esquecer/ A tristeza de um amor que passou/ Não, eu só vou se for pra ver uma estrela aparecer/ Na manhã de um novo amor”, canta Vinícius de Moraes, na música que integra o disco “Os Afro-Sambas”.


Não sei por que, mas me lembrei do doutor Hunter S. Thompson fazendo suas maluquices nos hotéis de Las Vegas e nos textos que deveria escrever, e não escreveu. Lembrei-me de Henry Miller com a barriga roncando na Paris dominada pela Geração Perdida. Lembrei-me de Charles Baudelaire e João Antônio flanando no meio de malandros, prostitutas e desalentados que a sociedade define como doidões.


Vai ver viajei nos mestres porque eles viviam sua liberdade em estado pleno.


Já faz tempo desde que eu era aquele cara com sonho de criar um tipo de jornalismo totalmente diferente daquele que é veiculado nos jornais da chamada grande mídia. Mas ainda alimentava a sede de amar e mudar as coisas, e eu acredito que a vida só tem sentido se você se atirar da ribanceira do tesão como os riffs tocados por Powell que dão vida aos versos do amor escritos por Vinicius.


Por isso, sentia-me encorajado a conversar com a cigana de Maia. Não pensei duas vezes quando minha companheira de vida sugeriu chamá-la. Devo admitir que sentia borboletas no estômago. Até que se prove o contrário, sou ateu. Até que se prove...


Se fosse um sujeito engajado nas coisas da razão, talvez argumentasse dizendo que não fazia sentido trocar uma ideia com um ser que, em tese, reside em outro mundo. Mas, quer saber, foda-se: dúvidas habitavam minha cabeça e eu estava à procura de novas experiências, novas sensações e novos horizontes, num êxtase que há muito não sentia.


Então, assim que caiu a noite, enchi uma dose de conhaque e me deixei levar pelo disco “Botequins da Vida”, clássico supremo da cantora Beth Carvalho, rainha do samba. Não demorou tanto para a cigana descer. Primeiro, fiquei encantado. Depois, o encanto dera lugar ao espanto. Seus olhos de farol me deixavam fascinado. Queria conversar com ela durante toda a madrugada de sábado que se vislumbrava. Terminamos o bate-papo comigo tendo certeza de que era filho do seu Zé Pilintra. Laroyê, seu Zé!


E agora, enquanto arremato esta crônica, digo para seu Zé: se tem alguém que sabe das minhas intenções, esse alguém é o senhor. Já para a dona cigana, digo-lhe apenas: obrigado por ouvir minhas elucubrações delirantes embevecidas pelo líquido do Presidente. Gracías, mi señora, por el trago. Espero-lhe em breve.




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